terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Aula de poesia 2

A arte jamais será ensinada. Arte é fricção e violência.

implantar LUGARES de VIDA COMUNITÁRIOS e produzir uma subjetividade que auto-enriqueça sua relação com o mundo.


Poesia:
acontecer do Ser
na manobra de materializar
o indizível

Poesia é fazer poesia. Não revelação nem desocultação.
E milagres acontecem. Como o único ato possível no horizonte do real.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Aula de Poesia
número 1:
Substituir ritmo por pulsar
Métrica por Atmosfera
e transformar virtuose em Possessão
2.
não saio de dentro de mim nem para pensar

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

roubos

1.
entrar em estado de palavra - ou certa "fatalidade inaugurada". Correr no aberto do rio, sem alternar correntezas. Pela palavra, o inexpresso. Adivinhar, divinação.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Instantes que cabem ou caem


Metáfora:
Golpes espessos em vasos de barro. Eis a nova argila. Úmida lembrança de um crime perfeito. Cresce a vestimenta, roupa do espírito. Carne do imaterial. Jamais falsificar o medo.
Todas as laranjas cortadas sobre a mesa.
E eu, a descascar maçãs antes que o filme acabe.


Monolito:
ovo apertado na mão. Gelado que escorre pelo canto de dentro do braço. Grade atravessada na garganta. Quadrado preto no meio da sala. O mesmo de antes, o mesmo que nunca vi.


Feito: costura de retalhos. Chão sujo de fiapos, retirar o que não é composição. Som de corte na mesa, risca de giz, alinhavar e soltar. Partir em carreira, marca do café sob o papel.
Qual o instrumento, qual o instrumento que acontece uma mulher ? Ser, até na dobra dos joelhos. Até aonde o peito voa. Ser, na mesa pequena, toalha quadriculada, no pote de manteiga, faca equilibrada e saco de pão amassado. Colecionar tentáculos. Afiar o corte da manhã. Ser, para reagir, mesmo a um custo,
Até traçar a rota e amassar as uvas:
35 doses de rum, Claire Dennis
Pai e filha, Yasujiro Ozu
Nikita, Luc Bresson
O profeta, Jacques Audiard
White material, Claire Dennis

Até estancar o fim.
Casa no meio do mato, próximo à ladeira das águas. Árvore de raiz grossa ao lado, canteiros esparsos, pedra encostada na parede branca. Sinal de terra vermelha que alcança os joelhos. Lá dentro uma fêmea, que toda chuva encarnava. Dançava no centro da sala, até trocar calor com o chão. Era a chuva do gesto. Pedido de transe. Corpo de cessar o desastre. Até o fim, até a última gota, até repousar quente na cama de palha.
Lá fora, o telhado ainda escorria alguns pingos,
E ela descansa, no eco que jamais se esgota.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Intantes de mim ou palavras que me cabem ou caem

Poesia: há um momento em que a vida tem um sentido insuportável: um estado de profundo excesso. O corpo ocupa o seu lugar e o campo continua guardando o sol e a noite. Lucidez depois da chuva, engrenagem nova, ligação inesperada e clara. Certa vez ganhei uma caixinha pequena com uma jóia dentro. Aquela imagem de que se guarda algo a mais do que ela mesma e por isso adquire seu último estado de beleza não me sai da cabeça. Saber que se guarda algo a mais e, no entanto, trazer em si a sobra, que se desdobra porque contém. Sobra: palavra de poesia. Estado poético e poesia: ocupação dos cantos da casa, da palavra e do corpo. Busca de pontos cegos, comprometimento com o que se vê depois da visita da verdade. Condensação, convite ao desdobramento. É sagrado porque é intermitente, entra e sai quando quer. Último passo para a fusão total, ultimo momento antes de descer rio abaixo. Aqui não habita a análise combinatória ou a arrumação de dados. Fundação. Fundição, Casa de Solda. Amálgama. Corpo gasto em outro corpo gasto. Guardião de um único sim.
Última cena do filme A Partida: escrever poesia é aquele momento exato de poder dizer: eu posso, eu posso preparar o enterro do meu próprio pai, preparei-me a vida toda para isso.
Na costura dos silêncios, recebe-se a missão de ser poeta.

Aceita-se ou não.

“tenho sido convocada
a escrever para homem só
aquele que fia as bordas do guardanapo
e guarda-os em sua gaveta
costurando dentro
a força de ser excesso”


Crença:
entre crer ou não crer prefiro o Sim. Na memória do corpo o estado de ritual, o estado de sincronicidade sem ruídos. Basta o olhar encarnado que os objetos começam a falar. Seres de ver, antever, prever. Sustentar a premonição é pesado e sem fim. Geralda era benzedeira, tirava o quebranto com uma folha de arruda e fumava escondido. Raimunda era religiosa, construía pássaros e borboletas de papel para prender na gaiola. Basta um pouco de pó e sol seco. Ter a experiência de crer no corpo: detectar aonde é discurso e aonde é real. Dar banho num homem cego, velho, negro e doente, carrega-lo nos braços, entrar em sua casa à noite sem bater, não duvidar do que deve ser feito. Sujar as mãos com a vida.

Partilha real: dar adeus às teias de aranha, asas de galinha, labirintos e espelhos. Engolir a seco o escorregadio do Outro. Leitor de gravidades. Inaugurar o evento antes de nascer. Aguardar a fala profética mesmo quando a conversa não há. Pregar-se na parede, descer do muro. Não deixar ninguém no silêncio, ninguém que lá não gostaria de estar.

Potência: ousar aumentar de tamanho, sem piedade.

Olhar: não cuidar dos joelhos enquanto é o pé que está doendo. Cheirar o sangue antes que coagule.

Até o fim: não há santos, gênios nem mestres. Há homens santos, homens gênios e homens mestres. Mãos grossas de enfiar a semente em terra dura.

Devoção: construir uma estante com livros de religião ao lado dos tiroteios no deserto. Espantar a oblação. O aberto é mais do que folhas ao vento. Nada pode o guardador de sementes.

Tensão: buscar a fala do chão. Cavar o poço de uma água nova. Ver os poros se abrindo no pano de chão esgarçado. Fomentar o fogo ardente nos ossos. Cada ato bem cavado tem um ritmo, uma febre, um ponto que ressoa. Vida no talo: corpo ereto.

Métis: desejo solto na pele. O último ato. Mudar todos os ossículos do corpo. Descaminhar. Esticar a espiral. Não há outro modo de aproximar-se dela: lugar de habitar. Aqui o vento bate e transfigura-se. Esticamos o ser na próxima esquina. Fábrica de mel.


Policia do pensamento: quando o medo apaga a página, sacos de cimento pedem a voz.

Acídia:
os homens padres da época medieval bebiam na hora do almoço e dormiam a tarde toda, noite adentro. Jeito simples de explicar a canseira do espírito. Vicio e seqüestro de si. Falimento, fé e alimento. Um comer por dentro.

Priapismo: colocar um lençol na janela. Escurecer o clarão do trigo. Dobrar-se como muda nova ao sol e renascer à noite, seta nas mãos do arqueiro.

Bancar: descobrir as plantas medicinais por entre o jorro das pernas. Tocar o impróprio a cada raio do eterno.

Ruminação: um extenso campo de grama e dentes que não podem caçar. Ruminar o pensamento e ficar às voltas com a superfície. Todo sonho é ato, mordida e corte.


Viveremos para sempre de um modo doméstico?

Laranjeira, pés de mamão e tomates:
eu Vos nomeio.

enquanto os tomates crescem

vida no talo

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

e passear com o cenário nas mãos do homem que contempla
o próprio sono.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

essas mãos que tem raízes
pernas tortas de compor florestas
de tanto estar - estranho
nomes que vão
como uma varredura no ar
dissipam sementes de uma nova hora
arrastada febre dormente da terra
que cava,
com toque seco
o lodo da noite do mar

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

cheiro de sangue aumentado nas pupilas: primeiro dia. Levanta os olhos ao escuro da escada, força as paredes do último regresso. Crime cometido. Portador dos turnos da verdade, segura o lado quente do erro. Rumor de eternidade.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

hora em que os corais arranham o mar
som cavando o denso
Ausência
volume de escuridão
necessária
e a pedra se faz
nascença

sábado, 16 de outubro de 2010

Mais Octavio Paz

"A poesia, segundo Lautréamont, deve ser repartida entre todos. Eu cometi a ingenuidade, quando era jovem, de acreditar que a poesia era aceita por todos. Eu creio que a poesia nasce sempre no indivíduo. Mas creio que a poesia sempre tem sido compartilhada por todos. Também creio profundamente, que todos os homens, também as mulheres, em algum momento de suas vidas, são poetas, por exemplo, na infância, quando se namora ou quando se tem um sentimento da morte."

Os Filhos do Barro- Octavio Paz

o que me pergunta por estes tempos
e que me cabe responder?

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

tenho chovido por entre as flores. O vento entrelaça a sede. Palavra pólen. Estio.Terra. Ardor

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

sob a lança
fez-se o nome
e no corpo fruto
não há pai sob os ombros
ou o impossível a endurecer o ventre
tocamos a estrada uma vez
da esquina, da reta, do pó
nascemos sob a lança

domingo, 5 de setembro de 2010

estou a compor o silêncio
um silêncio de estaca
sobreposto, matérico
de notas fincadas, entresafra
rosto solto no extremo dia
um silêncio de fronte, placa mãe
deus cortando a cana
faca e bondade num golpe só

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

os fios, cabelos emaranhados
a fome, anelos de uma
incompreensão rasgada
certezas em círculos
ressoam

no banco de uma praça qualquer
pode um homem tocar o segredo
sou véspera, palavra susto:
doces a secar na janela
batismo e insetos em volta da luz

terça-feira, 17 de agosto de 2010

era duplo
o segundo sinal
a mesma estrada e os tais sapatos

apresentava-se
o lugar de habitar em folhas
que logo o vento levaria
à mesma estrada, ao novo chão

o olho vertical do poema
afogava-nos inteiros
em solidez, fogo e massa
aquecendo dízimos
à espreita de ser

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

era preciso já ter acontecido
ou, ao menos, saber-se grande
no canto interno do Homem

não convém deixar de caminhar
por entre os pulmões
ou prometer-se
a um passo do rosto da encarnação, é preciso
gemer diante do Outro

já ter acontecido
e saber-se milagre
no hiato do desejo
e atar a corda
entre a cova e a palma da mão

terça-feira, 3 de agosto de 2010

conversa com Karl Kraus

onde desejam o corpo, procuro o espírito
onde procuram o espírito, quero o corpo

terça-feira, 27 de julho de 2010

uma laranjeira velha
por ela
haveria mãos
a tocar nesta manhã
e, de respirar em respirar,
encostar no chão
a escolha visitada
dobra do tempo
de uma voz despontada

sexta-feira, 23 de julho de 2010

a gaveta, um metrônomo
maleta com recibos
diapasão
óculos quebrados, caixinhas de guardar
lupa
tecla de máquina de escrever
corda de violão
bolsa de guardar documentos, feche enferrujado
fusível
caneta sem tampa, pilhas soltas
chaveiro com canivete
separador de moedas, pequenas lanternas
cortador de unha, nivelador
faca
selos perdidos, pregos dobrados
óleo de máquina
grafite em pó
ratoeira desativada
solda
fita de torneira, braçadeira
cola seca, dinheiro antigo:
e o molusco atravessa a ponte

terça-feira, 20 de julho de 2010

se a primeira dobra da esquina te chamar
e de lá aceitares partir de um porto ao outro, junto ao vento que se desenha no chão
e confiares teu corpo às figueiras altas de densas palavras,

verás que haverá luz para um olhar e uma parede branca para fazer o Vazio
como se tua presença pedisse um som. A tua presença plena que ouve.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

é esta vontade de cantar
ser duas e ser todas
que estoura os vasos
esculpe a luz latejante
e alarga as margens do fim

é esta
a hora de cantar
ser cingida pela terra inteira
arrastada pela mão de uma argila móvel
ser bandida
ser paisagem

terça-feira, 6 de julho de 2010

assim começa:
coiote assumindo a cólera
camelos entoando o canto
noite e menina de amarelo
coexistindo

o início chega à porta
entra nas dobras da pergunta
põe moldura nas soleiras
avança a febre do inverno

punhal cravado na parede:
é o instante que vem

domingo, 4 de julho de 2010

Roberto Piva

Sim, há alguma coisa em saturno que não conheço.

sábado, 3 de julho de 2010

exercícios poéticos I






fotos Camila Peixoto

o poeta

Como um cão, corre-lhes os domínios, detendo-se aqui e acolá; arbitrário em aparências e, no entanto, incansável; sensível aos assombros do superior, mas nem sempre: pronto para ser instigado, mas difícil de ser contido, é impelido por uma depravação inexplicável: em tudo mete o focinho úmido, nada deixando de lado; volta atrás, recomeça: é insaciável; de resto, come e dorme, mas não é isso que o distingue dos demais, e sim a inquietante obstinação em seu vício- esse gozo interior e minucioso, interrompido pelas corridas; assim como nunca se sacia com o que tem, também nunca o obtém rápido o bastante. Dir-se-ia mesmo que aprendeu a correr apenas para satisfazer o vício de seu focinho. p. 16. Elias Canetti, A Consciência das Palavras.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

habito um lugar
que não tem tempo
de morrer
inacabada superfície
encontra margem a margem
seu expandido início

quarta-feira, 30 de junho de 2010

ventania notívaga
passa ao largo do sono opaco
embarcação frágil dilacerando
o brilho do mar:
desce a noite- indecisão

antes de abrir as mãos
há que sentir a incisura
do corpo foragido que reluta
a olhar de perto o espesso ato
do irremediável, que chega em maestria
e convida as velas
a seguir em trilhos
do seco ao sol
era a minha parte
ali, feita nela
que não me deixava morrer
uma vez ao dia

terça-feira, 29 de junho de 2010

há um silêncio
que não é ausência nem excesso dela
não toca as palavras
ou no sobe e desce das escadas ao porão

há um instante
diante da casa desmanchada
que cobre o rosto da mulher
sentada à roca
enrolando o fio em suas mãos
antes de capturar o tempo
da fala que antecede o fogo

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Vigoram
Ávidos
Fuligem nos ossos
Corredores de vozes estiram sentidos
até soarem vermelhos:

dizem-me
dizei-me

terça-feira, 15 de junho de 2010

perder algo pode ser uma dádiva. Sentado à beira da porta, murmurava entre cigarros e pernas. Fera corroída. Ferrugem rompida. Tiro certeiro. Porque eles ressuscitam tanto? Casaco sob a cama. Livros sob mesa. Rosto ao sol. O mar não cresce só. Golpe final da questão inicial.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

beira de estrada. Fogo lento durante. O vento cresce no milharal. Encontro de imperadores. Não há retorno. Sopro selvagem e uma linha reta no horizonte.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Voz de laranjeira no corredor branco. Sol secando o chão. Sapatos descansando na porta de entrada. Água subindo o poço. E ela descia e ajoelhava descalça. Até percorrer a distância entre o mar e a terra. De dentro. Ousava cheirar o longe.

domingo, 6 de junho de 2010

sábado, 5 de junho de 2010

confiava nas altas portas
no vai e vem das tábuas
enquanto teu corpo
percorria de uma margem à outra

teu corpo e o rio
acontecia
de meu leito atravessar

quarta-feira, 19 de maio de 2010

querendo o fogo, espiamos a noite
que dorme com cheiro de lobo marinho:
Mercúrio e língua movente
pernas quentes de correr o rio que escapa
ao longe,um homem lança a isca
e conduz o pássaro ao início do dia
"Monstro de pernas retorcidas, o caranguejo é para toda uma tradição um animal que não anda reto para frente: ele anda enviesado, ele avança obliquamente."

Métis, As astúcias da Inteligência
Marcel Détienne; Jean-Pierre Vernant

quarta-feira, 12 de maio de 2010

é noite ainda
leremos o evangelho
antes da despedida

vou cair como a chuva
com a folha arrependida
escorrer no assoalho
responder pela expulsão do paraíso
mas vou

fincar no que resta
matar a promessa
ascender o sossego
acordar na metade
vou

voltar à casa da infância
erguer o teto acima da sombra
trazer moedas embaixo da língua
enfeitar de penas o corpo

nenhum incêndio pergunta para onde
eu sei que vou
um dia muda a eternidade

terça-feira, 11 de maio de 2010

jantar ao meio-dia
tarde e noite num poema só
enquanto o sol desce
há uma língua que nasce

quinta-feira, 6 de maio de 2010

como se
invisível fosse
o que trazemos
sob a face

terça-feira, 4 de maio de 2010

As mãos se fecham no mesmo instante em que as coisas jorram. Os pés frios escorregam nas pedras quentes. Por mais que incendeie, a vida é rente. Dente na faca. Anjo atravessado. Morte transportando morte. Até que o vinho renove a explosão da uva. E o trigo cante a aparição do pão. Todo corpo é gota da cura.
E sempre começa.

sábado, 1 de maio de 2010

e se chover, meu nome é
púrpura de pulsar os lábios
há uma hora no dia
em que os cabelos escurecem
as uvas amarelam
e o azul é fértil

há uma hora no dia
que não se rumina mais
Luz acesa. Pele de pássaro
gesto desprendido
rapto de deus da solidão

¿Qué es la vocación literaria?

"La vocación es una manía numinosa que se moviliza imantada por una fascinación magnética -mysterium fascinans-, pero que exige a cambio una devoción exclusiva, no compartida, que excluye fáusticamente -mysterium tremens- el amor por cualquier otra cosa en el mundo. Pues en efecto si hay algo claro sobre la vocación es su tendencia al totalitarismo, que practica rapiñando en el interior de su presa para instrumentalizar todos los campos de la subjetividad afectada, pensamientos, experiencias y afectos, devorándolos con voracidad insaciable."


JAVIER GOMÁ LANZÓN
01/05/2010

http://www.elpais.com/articulo/portada/vocacion/literaria/elpepuculbab/20100501elpbabpor_23/Tes
por mais que andes rápido
haverá dois carvalhos à frente:
deixa-te à sombra
descanse na raiz

e quando sentires que as coisas te ouvem
são tuas folhas
que se inauguram sem voz

molha a morte em seu sono
irriga o tempo
esquece a sede da palavra:
és o ventre do mar

terça-feira, 27 de abril de 2010

Ingeborg Bachmann

Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.


de Ingeborg Bachmann em "O Tempo Aprazado"
(tradução de João Barrento e Judite Berkemeier)

domingo, 25 de abril de 2010

há sempre um olhar
que não se foi
cravado no Aberto
como se o amor fosse lento

sábado, 24 de abril de 2010

todos os barcos sairam do cais
e eu não sei voltar aí.

terça-feira, 20 de abril de 2010

repousava em seu pé. Era a minha parte da casa
até que as horas me chamavam
então eu partia até o último degrau
e me punha na ponta dos dedos
desprendendo-me no limite da noite

acompanhantes habituais
quase não me mexia
trazia nas mãos
a vontade de recontar uma história

rosto que se iluminava
como o sol descendo a cada salto

eu me renovava em cenário antigo
e tu, que conhecias todos os silêncios da terra,
perguntava-me:
quem dirá que jamais brotará a semente ?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Cresce.
és a familiaridade de meu espírito.
quantas manhãs em hélice
hão de haver
até que o corpo caia
do poema
e viva em pedra removida
nos quatro cantos
de uma janela de abril?

domingo, 4 de abril de 2010

jogou a moeda no poço e ela caiu-lhe nas mãos. Como esperar a palavra certa, se a voz emerge no jorro da fala? Não se entra na vida ao nascer. Era invenção a cada outro.
E levantou-se, como o mar se ergue para alcançar o sol.

terça-feira, 23 de março de 2010

faz calor na pedra
a aquele que traz a rocha
já pisou em árvore seca
e no barulho de cada passo
fez silêncio de guardar semente

domingo, 21 de março de 2010

quem vai à minha frente?
qual presença que cega
é a sede por dentro
palavra que sai rasgando o nome
dois pulmões soando juntos
dois porões tocando céu

terça-feira, 16 de março de 2010

Abri a porta de casa. A fala jorrava a biografia por entre as juntas. Já não podia desdizer-me. Não portava nada. Era estado único. Olhos nos olhos do corpo original.

domingo, 14 de março de 2010

terça-feira, 9 de março de 2010

a toda noite o menino santo perguntava-me:
e então, beijaste o inteiro da loucura?
e eu respondia:
hoje não, posso ainda mais.

quarta-feira, 3 de março de 2010

quando a fala encosta na chuva
o silêncio da poça aparece

segunda-feira, 1 de março de 2010

As cadeias estão vagas. Corro com o gelado no rosto.
Até as luzes acendem
Antes eu vejo. Porque algo em mim agradece
Março estrada
Setembro sutil. Há uma nova ordem que não se esvai
Subida última
para nascer

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

nunca havia tocado nesta casca tão fina
e se fosse possível encontrar rios debaixo da pele
qual cor teria o nome do que levita entre nós?

deitei no campo de flores
para ser sombra em tempos de sol

cantemos Glória em altas vozes
enfileirados nas calçadas

enquanto nossas crianças
roubam os tapetes das casas
e costuram as sujeiras
para dormir o perdão

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

diga-me por entre os intervalos dos eucaliptos
o teu sim. Não outro,
mas um sim a mais que ele próprio
um sim que é borda e irrompe
o excesso do sim, o cansaço inalcançável
que ora pede rosto em sombra, ora em sol
e caminha ao som das folhas
de mãos dadas
ao que faz do mesmo,
um outro sim

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

de todos os altares que ergui, trago somente os pés sujos no lençol. Qual era o alimento antes da fala? Acaricio o sentido contrário destes poros e toco o que me alcança. Peço para não retornar à lucidez de uma vez. Guardarei estas pequenas intimidades enquanto a Água não vem.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

morangos no parapeito
mergulhados em seu peso
pediam uma mulher de pele atenta

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

desenho muscular
de um cavalo
alinhavando terra e mar
cadência do destemido
rosto de si
santo seja o nome
deste solo que nos impele
a amarelar com as páginas
e carregar entre os dentes
o fogo que arrasa o chão

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

era vasto
o que o som das copas
me traziam com o vento
atrás de mim, uma voz
carregada de cestas e frutas, semeava:

consegues, no excesso do silêncio,
conviver com tudo o que dissestes
até agora?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

na superfície do rio, o altar
aconselho-me com os sábios habitantes dos canteiros
ao lado destas margens querendo alargar-me

tem um animal que pede aqui dentro

uma gota a mais nesta língua nascente
um horizonte febril
nas palavras difíceis de fazer
é o espelho olhando o sol
é novo o dia

e as elas me usam
num canto peregrino
como centelhas que saltam
sou isca mergulhada na luz

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

no limite dos dedos
toco o que não posso
arranho a lucidez
-um instante-
o acesso negado
a única porta
sou a chave
que trago nas mãos

sábado, 30 de janeiro de 2010

O Idiota, Dostoieviski

"quem não tem o solo
debaixo dos pés
não tem Deus"
calhas secas, paredes úmidas e folhas amarelas na mesa, vá
contra o que chega é a descrença que mata,
queres tanto se não és
mora nos intervalos do que move e nada altera seu lugar
ao menos que diga o que é próprio e sempre cai
de ti

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

fogão sujo
caneca amassada
fogo levantando
leite com voracidade
manhã em detalhes
avental retalhado
manufatura do recolhido
renovados cheiros
som da colher:
tempo que ajudou a cumprir

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

sou o fim da viagem
numa casa de veraneio
não vês que os espaços em branco
cobram silêncio e presença?

eu não comungo da morte
desçam aqui os homens
que plantaram aquelas cruzes
no alto da colina

reconheço minha falta de gosto
não sou mais que os cantos daquela muralha
em cadência ocre, verde e amarelo-negro
mas viveremos para sempre deste modo doméstico?

não amanhã, mas agora
neste Aberto de silêncio e presença
cólera ao meio-dia
desça e ouça
os estalos desta morada nova:
aqui estou.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Zilda Arns

mas como alguém pode estar inteiramente em mim-
eu, que sou tão inacabada?

pra sempre viva,

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

àquele que foi dado
o direito de morrer
olha pela janela
e vê fora a sua luz

voz emoldurada
pátio seco
chuva anunciada
o homem e a janela nascem iguais