quarta-feira, 28 de novembro de 2012


Um menino, na sétima série, que chegava na sala de aula todos os dias e tirava a sua roupa, tênis e meias, pendurava no varal, que ele mesmo havia feito, de barbante, no fundo

Nu, sentava-se no meio da sala, a trocar a pele com o chão, cadeira e outros materiais. Magro, sem frio nem vergonha.

Não me lembro da professora. Eu me sentava perto, ao seu lado direito. Mas, algumas vezes, no meio da aula, eu me achava debaixo da cadeira, no esconderijo da expiação

 E pensava:

Quando chegar a hora do intervalo, vou pedir para ele fazer um desenho para mim,

e vou saber como um homem se equilibra ao sol.

Um pedaço fino de carne, com buracos espaçados, atravessados pela luz do dia, pendurados no varal, costurado com uma linha de pipa que amarra a estrutura viva de tecidos moles e outras ressurreições.

A tapar seus buracos. A fechar as feridas vazadas, cicatrizando-as. A linha, que no inicio parece ser forte demais, estrangeira àquela matéria, vai entregando-se, escurecendo e se desfaz,

Cedendo ao acontecimento da carne.  O sistema da carne regenera-se

 e passa a estar com a luz de outra maneira

de troca gradativa de cor, explosão de brilho e calor

E este fenômeno ainda necessita de descrição

Pois, se um dia chamamos  ESCRITA o que se vai com a linha,
qual o nome desta voz
que se inicia na carne?

terça-feira, 27 de novembro de 2012


A casa aos poucos vai se tornando empoeirada. E não é por meio das pessoas que lá habitam que a sujeira se instala. E nem pelas janelas, de onde poderia se supor, pois comunicaria o interior límpido da casa com a selvageria exterior.

São as paredes,

as encarregadas de depositar uma fina camada de pó nos móveis, nos livros, nas pessoas, na claridade de um lugar.

São as paredes.

domingo, 4 de novembro de 2012


Acordar para a Aula-Poema em 03 atos,
que serão 03 cantos. O primeiro, a incorporação. Força solo de um Sim.
O segundo, a convocação. Só serão chamados a falar os que sentem o coração no centro da boca
O terceiro é o diálogo dos vivos. Mas em silêncio.  

Eis a minha profissão para os próximos milênios. E chega de concessões.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

quando duas pessoas se escutam
uma guerra cessa
mas quando uma pessoa escuta a si mesma
é uma espécie de milagre

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Tao

Quando todo o mundo reconhece a beleza então a fealdade por contraste é criada.
Quando a bondade é reconhecida como bom, então a maldade encontra existência.
...Portanto o sábio não age e ensina através de não falar.

O mais alto mérito é como água.
A água é benéfica a todas as coisas mas não contesta.
Ela fica em lugares que outros desprezam.
Portanto é como o Tao.
Onde o Tao está, o equilibrio está também.
Quando o Tao se perde,surge a diferença entre as coisas.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

No dia em que eu conseguir responder àquela senhora: "sim, está!" - que parou ao meu lado antes de atravessar e disse: "está chovendo"- e meu braço, sem olhar para trás, inclinar-se de modo a envolvê-la com o guarda-chuva até o final da travessia,
eu saberia o que é fazer amor na rua.
Acredito nisso.

A única vez que entrei numa igreja foi assim: as paredes eram claras, com vitrais nas janelas e um teto imenso.

Na frente via-se uma escultura em barro, de roupa e pele marrom.

Eu respirava e a igreja forçava meu peito, a se expandir no limite do preenchimento. Aqui dentro. A cada soltura, mais devagar, o ar entrava pelo vidro.
Toda luz expirada era a existência da cor.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012


Optei pelo calor do texto e estou a falar-lhe disso. Então olho para o lado

e vejo que meu jeito de alimentar é misturar a ração com um pouco de molho. O caminho todo é repousar neste aroma.

Há um mar preciso, que chamarei de pensamento, que responde às estações do ano: ora congela-se, ora se agita, ou se aquece. E, do mesmo modo, há o fundo do olho, que chamarei de instante.

Ambos se procuram.  

Se haverá encontro, se há um barco, ou o mensageiro a atravessar as espécies, se há alguém que sobrevive desta comunhão  e autoriza-se a contar-se, não sabemos.

Percebo que estou a falar-me, já deixei de conversar contigo. Mas, de água viva ou de sonho, prossegue-se,

Pois há coisas que vivemos de um outro lado.

Esta língua que me permite escrever, não me põe a entender.  O mar oferece-se aos olhos. Mas, e o olho,
nasceu para ofertar-se ao mar? E chegará o homem de olhos até aqui.

Caberá a nós continuar. E é de trindade que falaremos.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012


 
Pão: o hábito de amar demais segue o curso originário de cortar o pão. Os dedos vão perfurando a densidade da massa, os mesmos dedos que antes lhe deram forma, vão aos poucos rachando o alimento ao meio, e o pão a multiplicar-se em pedaços o estranho modo de aumentar-se inteiro na entrega.
a escrita adquirira um aspecto entalhe na madeira
mas foi acordar hoje e
a visita da vida toda
foi escutar que falar em nome de
me privava daquela árvore

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

esta paixão seca

em alto-mar as peles entregam-se ao sal

não se pode continuar, a humanidade está em risco

a superfície em sede,

e continuam falantes, os amantes,

molhados

o amor cava um espaço de montanha

para proteger o animal da chuva


Os espinhos pregam-se às roupas

A moça ocupa-se da limpeza da janela

Enquanto alguém pensa o que fazer com o pote sem uvas que recebeu no verão passado

 

Estou pronto, neste quarto amarelo

A dialogar com as palavras. Elas podem fechar o sol. Elas podem tudo.

Estou pronto, a professar com as estantes

que aprendi a brincar de labirinto, mas não sei o que faço quando me batem à porta



As sombras são palavras mudas

brotam em cima da casa fechada

 

Quanto mais unidas as mãos estiverem

mais longe a carne pousará


nossos joelhos aprendem a olhar para o chão,

mas o peito nasce para tocar o nu

 


na mata de eucaliptos, de sombra exposta, porém ensurdecedora

somos uma lembrança jogada ao telhado

a desejar o centro da folhagem

quarta-feira, 22 de agosto de 2012


Porque as uvas estão a nascer
ou se sonhamos com uma pequena caixa de relíquias
há um homem a transportar-nos para o mais alto do rio
sem perguntar-nos acerca da volta. Tu sabes. Apenas aguarda a hora de sentir

Algo de imaterial como a palavra
que viaja do tempo mudo,
a misturar-se com o sol.  

O poema estanca o leito com a mão suada da terra

As duas margens do encontro
o desejo de não terminar as frases
e o silêncio que precisa falar
 

sábado, 18 de agosto de 2012

os mais fortes pensamentos são os que se encontram próximos da estrutura de uma declaração de amor. Procuras as palavras e a sua sequencia, mas o ponto de origem é um sentimento. Estou a sentir tanto que até era capaz de pensar, diz alguém. Maria Zambrano

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

e foi assim
que a palavra rompeu-se:
                      não sou uma pessoa

entre o sono e a vigília
o pensar era de areia
                por entre os muros da lucidez

a matéria nascia para o porosidade
assim como o ser nascia para a luz

quinta-feira, 9 de agosto de 2012




A caneta com que se escreve está a manchar nossa própria roupa.

A imaginação não evita a morte. A imaginação não tem coragem de dobrar a folha

 e escutar o sol que canta na pele da planta

para que a noite nasça lua de um mesmo lugar.


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

na casa de Llansol

não haverá nunca um novo mundo, pensei, mas há um outro neste _______________ e continuei a ler (LL1, 19)



sexta-feira, 13 de julho de 2012

A carne da minha fala não é metáfora
A carne da minha fala necessita de controle


A conversa vive por um triz,
Promíscua

segunda-feira, 9 de julho de 2012


A visita, se nos mentisse. Voltaria atrás carregada de medo.

E não se ouviria mais o canto de uma criança na neve saltando de cor em cor.

Mas, aonde cresce a coragem. Ou  

das coisas que não acontecem por não terem cabimento. Tem-se noticias do há.

Entre os meus seios, o que renasce, contra o furor higienista de minhas mãos.

O que é vivo, aceita esta duração, mesmo sem nenhuma porta para abrir.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

os iluminados ao entrarem no clarão do azul dirão aos peixes:  eis a presença a nos servir. E pregarão as cifras da experiência de um livro fechado. Mas, se quase o corpo, escutar a cabra, ou o inteiro a berrar,
é o verbo, a volver o medo. Pois não há olho sem lei.
E um feixe de alguém se anuncia, na entranha polida
Cerca
Aberta
De começar

quinta-feira, 14 de junho de 2012


Um sistema inserido na boca para consertar a mordida. Uma prótese, dessas que o humano usa para garantir o que ainda resta de orgânico. E esta começa a machucar a própria carne, a macerá-la por dentro. Não haveria quem arrancasse a delicadeza de um arame farpado perfurando o vivo. A não ser o lenhador e o alicate da noite, sujo de entortar as cercas do início de um dia. E, com as duas mãos cravadas no centro da boca da moça, se esbarram:

     são sujas as distâncias de afeto.

quarta-feira, 6 de junho de 2012


há muito tempo que não venho. Há pelo menos três gerações.

Mas de dentro do corpo da mulher de pedra eu vi a extração. Era a espessura cheirando sexo aquecendo a luz branca de um centro cirúrgico chamado aula.

Fumegava no cangote a trapaça e eu quase me fiz filhote da palavra, mais uma vez.

Mas o menino W. estava ali. No seu modo de não-estar cuspiu o vôo do pássaro
ainda morno, no ovo envergonhado,

que a voz de T. captou no parto,

e por suas pernas escorreu um líquido viscoso, chamado dizer

Uma pipoca, ou melhor, um fragmento de pipoca, muito pequeno, correndo no chão da praia caçado pelo vento. O menino L. corre atrás dela, por toda a orla, e eu, correndo atrás do  menino L. Atrás de mim, a ferida aberta da paisagem, correndo junto,

Perguntei-me se a mulher-escrita não dormiria neste acontecimento. E realizar o encontro-embate da ferida com a pipoca seria o poema.  Do sangue pulando no pescoço quando se corre, do gesto que nasceu no mar antes da palavra, do olho que se afoga em sorrir

para junto da pipoca.

 O poema era uma cadeira branca que eu tive medo de sentar.

Mas aconteceu que o menino L. telefonou perguntando se iríamos à praia novamente.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

porque amo LLansol


De dentro da bacia de prata carregava a tinta azul que encobria meu rosto matriz

a impregnar lençóis brancos, a parede branca e o outro que encontrasse. Uma mancha desforme impressa. Borrão azul e identidade.

Llansol ofereceu-me uma toalha dizendo: Limpa a tua face.

Eu disse-lhe: não é chegada a minha hora.

- Há uma única diferença entre o beijo e o poema.  O beijo pode ser dado mais tarde,
O poema                                                           .É de hoje que se trata.

do aparato dentário para a mordida, que contenha o quente do suor.
da palavra escolhida na palavra herdada, do anúncio nos olhos da denúncia,
a confiar-se numa fina abertura do tecido no imenso da terra.  deste sim. em pequenas letras,
que traz para perto do corpo o animal a nascer.

O encontro escreve poemas,
dá forma ao abraço do aéreo,
e ao beijo de amanhã.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Era um dia de fome. Abri a sacola e encontrei o rosto da antecipação. Ocupava o lugar do pão. Era Ele. Um deus pesado demais. Saciado sem que eu mastigasse. Escorreu pelo canto da boca uma ausência. Véspera que empurra para frente o próximo chão.
O caminho


Numa noite escura, caminho adentro

Os discípulos iam assustados de abandono

E foi então que se aproximou um homem e lhes perguntou:

-Porque é que vocês estão tão tristes e se lamentam?

Eles responderam:

- Ora, você não sabe que o nosso mestre foi assassinado?

E foram lado a lado, a conversar sobre os últimos acontecimentos. Falaram das mulheres batendo no peito, de suas crianças crescendo em metáforas e os animais a urrarem de sede.

Ao chegarem perto do vilarejo, o desconhecido ensaiou em despedir-se, mas os discípulos disseram:

- Fica conosco, há comida para todos.

E, aceitando, sentou-se com eles e partiu o alimento.

O gesto daquele homem inaugurou o gesto do homem do homem e repetiu-se em claridão.

Foi então que perceberam. Dizendo:

- E por acaso enquanto ele caminhava conosco, não sentíamos o nosso coração arder?

terça-feira, 15 de maio de 2012

Entrava no poço compacto e o coma-da-mão abria-se para o excesso
Era universal aquilo que comia
De uma conversa sem arco a cidade rasgava-se
O ponto-poente puxava a linha tensa
Para um tropeço ainda maior
Foi aí que aprendi a fazer a bainha da saia

Rente ao chão, na possibilidade de crescer

quinta-feira, 10 de maio de 2012

caminhar para a morte mas na direção contrária

todos os dias dom helder levanta-se do chão de mármore e caminha até o pátio

posiciona-se diante da rosa dos ventos  e pede passagem

para onde este homem deseja ir? E nós, que nos movemos por entre os textos inteiros,
o que faremos diante dos fiapos?

é junto de seu corpo que a palavra quer

é junto de sua palavra - pobre demais-

que a língua goza

 ao pertencer
.".. eu até preferia não ser "escritor", mas ser aquele que consigna em texto a sua experiência, para que ela fique sobre esta Terra e possa ser ligada à experiência de outros"

Maria Gabriela LLansol

segunda-feira, 7 de maio de 2012

"um animal convertido, enrolado em bola, voltado para o outro e para si, uma coisa em suma, e modesta, discreta, próxima da terra, a humildade que sobrenomeias, assim te transportando para o nome além do nome, ouriço catacrético, todas as flechas eriçadas, quando este cego sem idade ouve mas não vê chegar a morte." j. derrida, che co's è la poesia?

sexta-feira, 4 de maio de 2012

pode-se
raspar com os dentes o verniz sob a mesa, comer os pedaços da tinta, cavar a madeira com cuidado para não entrar fiapos debaixo da unha, lamber o produto que lustra a superfície

porém,

o olhar dos animais debaixo da mesa
jamais será servido ao jantar.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Escreve-se esparsamente. Aprende-se na aula: o que é, como e quando. Afasta-se ainda mais do tempo bruto. O anel desloca-se. Os que se participam já se conhecem anteriormente.
A poesia hera. Único gesto orgânico. Eis que te pede para retirá-la do curso normal do papel.

Entra a mulher sem brincos no olhar e vê teu caderno minúsculo
A derrubar-te em cachoeira
Passa a mão no texto, o falo da escrita
Faz morrer o gelado do gozo

 São três senhoras
 E uma pergunta: porque te penduras num relicário
se duvidas da qualidade da luz?

domingo, 22 de abril de 2012

Se a leitura,

ou não mais sentir dor
ao escolher-me por entre as narrativas
cujo arder de suas páginas
só é possível inscrever: misteireza,

Deixo.

O alimento deste animal é maior que seu corpo
e vestir-se é bem maior do que se escreve

sexta-feira, 20 de abril de 2012

breve recado de M.G. LLansol nesta noite:
não exponha a sua pobreza. não é necessário contá-la a ninguém.
ao menos que esta,
somente esta,
seja a sua riqueza

sábado, 14 de abril de 2012

quinta-feira, 29 de março de 2012

quinta-feira, 22 de março de 2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

A incerteza desta manhã pode
Trazer-nos um presente de ligação
E existir do que não é necessário

Há uma permanência a ter-nos em alta conta. Uma profecia ouvida. Um homem que corta a grama de sua casa, há trezentos anos, sem nunca ter sido visto. E, no entanto,
você sabe: é seu irmão.

No mais,
Um dia,
um dia é muito

sexta-feira, 9 de março de 2012

Tenho ouvido de mestres, padres e especialistas que só é possível o humano ser mais humano na história inventada.

Mas hoje eu não quero crer neste intento. Marquei um encontro com a aparição. Visito o tempo de braços dados com a garganta e seu rasgo. Os dentes nascem debaixo dos pés, a cultura lava as panelas e os vestidos sobem para alcançar os livros da estante. As ferramentas enferrujadas marcam o tecido fino

E, com a secreção do olhar, pode-se prender o fio da memória na carroça da frente.

Neste lugar ( ) sou transcritora.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Ouço vozes. Frequentemente são frases inteiras que me chegam aos ouvidos. É a mulher que lê livros ininterruptamente dentro do meu corpo. Ao se deparar com uma frase intensa ela levanta os olhos e pronuncia-a em voz alta. E eu escuto. Como esta que acabei de ouvir: temos o corpo, temos o sangue. Mas não há Cristo.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Ela equilibrava-se em suas cordas vocais e, por amor, eu dizia-lhe para caminhar em riste, pois na outra ponta haveria o silêncio.

A travessia é feita por uma bailaria desqualificada, não se preocupe. Dizer é uma caixa de frutas dentro do pomar.

Confiante, disse: - tenho medo de viver no vaso, evoluir no vaso, sem perceber qualquer árvore do chão-

(mas, antes do final da frase notou que uma raiz crescera em seus pés)

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Meu coração nunca foi lugar de conversar com Deus. O silêncio sim. Mas sempre quando estou quieta de olhos fechados, vejo uma lanterna passando pela superfície do corpo de uma mulher. E ali começamos a conversar: eu, Ele, o suor, a textura e as vergonhas.
"um homem foi morto pelo seu espelho e, no entanto, era belo". Gonçalo M. Tavares

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

- Escuta, estou te dizendo para nascer de novo. É preciso buscar no meio fio aquele desejo de socar a vida de palavras firmes, amor. Por um tempo éramos tolos ao falar em filho de Deus, lembro que te rias e mudavas de assunto. Mas essa angustia, V., esse comer por dentro sem repouso, esta vontade de preencher a fala com fatos, bananas, travesseiros, isso já não tropeça mais em mim. Tá fraco, gosto de um veneno maior, um veneno que me coloca de novo no escuro do corpo escuro de um homem negro e cego, de osso escuro e velho, pedindo-me um banho. Eu vou, V., dou um banho nele sem pensar, não sei como cheguei ali, é preciso segurar o corpo passarinho para que não se quebre, não tem luz e a cama está toda suja. Se me lembro do cheiro? Não há cheiro dentro do ato. Há o ato sem quebra, sem tempero. Ali era ser Deus, V.. ]Não me pergunte, não posso falar mais sobre isso.

-Dar banho em alguém é ser Deus?

-Se banhares o corpo do outro em teu corpo, sim.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Hoje, decidi passar o dia a recortar o jornal, buscar imagens nas revistas que se acumulam na prateleira da estante, visitar os blogs de amigos próximos- ler demoradamente o que escrevem, vasculhar as revistas literárias, conhecer novos escritores. Abrir de novo o livro rabiscado. Comprar revistas novas na banca de jornal, ler as matérias atentamente, desde o índice até a capa final. Hoje,

eu só posso olhar a face que vier, até ficar com um rosto qualquer,

antes de me posicionar, demorar no olho que não é meu.

Ler todas as escritas de um dia,

pois há algo aqui. Que o pensamento ou o som de um relógio não contam

Hoje, quero a operação reversa: da bala que vai
para o corpo atingido,

Não sou a faca. Sou a mulher golpeada pelo filho

pois não compreendo
O que falta à inteligência da proximidade

Hoje, não vou acorrentar-me na febre da víscera.
Quero o corpo inteiro
fora de mim.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Na sala de aula, cadeiras em círculo e três pessoas aguardando o professor. Entra a faxineira da escola que retira o lixo e escreve na lousa:

Por um vômito da linguagem, não de si. A romper a cisterna da sintaxe,
para não mais guardar distância entre nós e as coisas.
Se tenho raiva na escrita e na fala é porque minha respiração não as separou
Como Domênico antes de botar fogo em si.
Atiça, o excesso de lucidez, atiça.
Se cheirei a face deste lixo
foi por necessidade de explodir antes que o humano se rompa
como uma caixa de tomates rolando prateleira abaixo

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Um casal come tranquilamente no restaurante quando uma criança segurando uma caixa de pano de prato vem em sua direção. Os três se olham e ouço falarem em voz alta:

Sou o humano que cheira. Se agora encolho meus dentes,

É porque há mais objetos que o necessário por aqui. Posso viver com as pontas do meu coração queimando, mas não suporto beber o chá numa xícara que não viveu.

Não se pode adubar a terra com o corpo que não é seu.

Hoje, é como se alguém muito importante tivesse morrido.
Por necessidade.


E há que se abrir as paisagens, para encontrar pessoas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

VIDA= Espaço
EU= Levantar-se
NÓS= Esta Manhã

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

hoje,
antes de escrever, olho para todos os lápis,
quero apontá-los um a um

(não sei o que fazer com o pé quase seco de feijão exausto de parir. Já é hora de replantar as mudas de alecrim. As uvas estagnaram-se. O manjericão não pára de crescer. O pequeno limão parece conformado. É preciso tirar o coração do sol)

mas nada me diz tanto quanto
-descrever o negro com a unha-

domingo, 29 de janeiro de 2012

Você se parece com a minha gata.

Te pego solta, brincando numa loja, em meio aos cabides. Você vai pra casa e não te vejo. Tenho medo de apertar teu corpo e espremer tua respiração,
Mas vou até o seu sono ver como está. Você faz pouca resistência.

E percebo como sou pequena. Mas sei o que é cuidar.

Você cresceu e eu atrás. Saía e voltava. Nossos segredos. Teve filho no meu colo. Era úmido de responsabilidade. Eu fui os olhos da tua mãe

e te joguei atrás de um muro,
Sem saber que o muro pode nos livrar de um incômodo,
mas a escrita não.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Livro da Sabedoria II

Do livro de Jó:

- antes de sair, verificar se a ideia está colada ao corpo-
- ao descer do trem, o chão ainda se move-
- não se ocupa em alguém o espaço de dois-
- a roupa da santa se desgasta com o tempo-
- o guarda-chuva preto no quintal é a memória do morcego debaixo da pele-
- peixe branco se come com as mãos, com bocado de farinha e molho temperado no prato-
- a superfície hospeda o verso-

sábado, 21 de janeiro de 2012



















sou uma pequena flor caída de seu ramo
no chão lilás-

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

hoje guardei um trocado no canto do bolso
-é preciso ter alguma reserva - pensei
pode ser caro não desistir de mim

oração da manhã

É ao Espírito Criador a quem me devoto
Cumpro meu dia, deito-me cansada sem planos para amanhã
Ele me cava uma massa quente por dentro, que tem ouvidos e pulsação. Interrompe minha garganta quando se sente sufocado

É ele que me faz ter vontade de andar de mãos dadas com a rua
Olhar um rato e não me assustar
E ver um sapato jogado no meio da casa e estranhar a existência inteira

É ele que enrijece meu corpo como quem se esqueceu de doar
Que se debate na miséria do jornal
Que vai à cracolândia, à Gabriela Llansol e Jodorowsky como quem segura uma caneta

Que lê a terra
E arranca as palavras debaixo da unha
É ele, que retira a panela de arroz debaixo da chuva
e me devolve para a mesa da fome

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Era portadora de uma mensagem. Só faltava decidir o lado.

E no meio desta história havia um homem sério e bigode grande dizendo que a vida pode ser ativa ou reativa. Era uma bandeira que trazia nas mãos, como a Vontade de Poder. A mensagem fora escolhida: partiu a menina de calça branca no meio da perna, cabelo curto e, entre os dentes,

a voz a correr pela soleira da porta, deitar no balcão, amansar as ovelhas, atuar no vivo.

Voltando:

É difícil perceber que não se tem um plano para a vida quando se pensa que tem.

Vi uma mulher forte cair e suportei-a em meus braços. Não havia qualquer escuta de onde viesse,
Era ver o tecido mole e acolher, desta experiência, era limpar e guardar.

E assim se faz um amuleto de tecido, solda e erva.

Põe a erva de São João para fazer crescer a Anomalia da terra. Se as botas do ditador ainda te encaminham, envolve a erva em tecido cru, véu de noiva e linho nobre, costura seu entorno como um coração, até que seja o dorso inteiro

Voltando:
Tem solda no pescoço dela. E um ovo tocando a terra

sábado, 7 de janeiro de 2012

Para Luis

Há escrita entre o homem e a sua palavra
Escreve-se porque a mão em que caberia a humanidade foi mutilada pela língua do sentido
Escreve-se
porque no silêncio dos roedores há mais indignação
porque o homem rasga o missal sem nunca ter desobedecido o próprio pai
Escreve-se,
por uma liturgia em que todos comam a palavra final

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

No ponto de ônibus, ouço a seguinte conversa:

- O batente da porta dos fundos de minha casa está apodrecendo. Vi que a madeira está quase sem tinta, com uma textura oca e úmida, quase se desfaz na mão. O batente está frouxo, mas não totalmente solto. Entre ele e a parede há uma fenda, um espaço por onde escorre uma poeira fina escura e,
Não consegui limpá-lo ontem. Ainda com o pano molhado na mão,
Coloquei o dedo naquela fenda e espalhei a poeira de dentro pela superfície do meu braço. Fiquei, por um instante, suspensa. Tinha luz.

E luz era a qualidade do desaparecimento.

A outra responde:
-Um animal quando vai morrer se recolhe. O homem, quando vai morrer, se recolhe das palavras. Não te parece estranho: por mais que a gente se esforce em dizer
o silêncio ainda será grande
pois o corpo é água
E as águas reverberam?

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O centro da casa é a mesa a escrever. Por um motivo:
o seu teto é frágil. não garante proteção contra a chuva,
nem guarda a comida de amanhã

Do livro da sabedoria I

Os sete pecados capitais:

-Nos braços de um torturador voltar a ser criança
-Deixar a fome no meio da fala
-Confessar ao caderno o que nasceu para ser dito a alguém
-Aceitar que uma planta seca não brota
-Ser soprado pela falta de sopro
-Construir a passagem secreta para a pedra e não achar a porta
-Esquecer de apertar a mão do homem que vende fumo de corda
Entro num bar. E ouço:

A sensação era de parar no tempo. Considerava agradável repousar na continuidade dos dias. Mas, parar no ar, como uma gaivota? Impossível.
Até o que morre está a aproximar-se e distanciar-se de algo.
Eu não sentia o movimento. Acreditava-me diferente. Achava que esta pele produzia outro cheiro. Que era possível ouvir o que eu falava sem balbuciar uma palavra. Era um tipo especial de comunicação, mais sofisticado do que as formigas.
Mas foi o tomate que me lembrou da fertilidade. Da semente que se parte, incha estourada, migra e se encharca. Cresceu num vaso, arqueando o caule. Curva de uma trompa que acaba de acordar.
Há um ritmo nisso. Que esculpe um rosto, mesmo no escuro.
Por mais espalhado que esteja, há uma forma que te vê desprevenido e morde.
O tomate,
sem sentido nem língua nem juízo nem gozo nem estética nem moral nem destino nem crença nem unidade nem eu.
Estou,
a desenhar em mim o que extraí (e se enlouquece aqui dentro)
ao som dos tambores, no gesto de um
homem nu. Cavando a fundação iniciada no umbigo do eterno sim
acostumado a dizer não.