ensaios


1- Maria Gabriela Llansol: o tecer e o traço. (Uma escrita sem representação)
(artigo publicado em 2013, Universidade de Belas Artes, Lisboa, Portugal)
https://issuu.com/fbaul/docs/croma3/200


2- A experiência de ler Juliano Garcia Pessanha: a heterobiografia e a escrita topográfica
(artigo publicado em 2014, Universidade de Belas Artes, Lisboa, Portugal)
https://issuu.com/fbaul/docs/croma3/200


3- A escrita-rasura na obra de Edith Derdyk
(artigo publicado em 2016, Universidade de Belas Artes, Lisboa, Portugal)
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1647-61582016000300014&lng=pt&nrm=iso

4- O poema Marcelo Ariel ou de como nos tornamos sóis
(artigo publicado em 2017, Universidade de belas Artes, Lisboa, Portugal)
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1647-61582016000300014&lng=pt&nrm=iso


5- Entre a escritura e o bordado
(artigo publicado no livro: Narrativas de educadores: mistérios, metáforas e sentidos, em 2015)

O fio que une os acontecimentos do Ateliê de Palavras e Bordados realizado no encontro de formação de professores de Artes da UNESP em agosto de 2014 (foram dois encontros com participantes diferentes) tem início na minha prática solitária de escrita. No gesto silencioso de escrever sem rumo certo, sem intenção de narrar, representar ou descrever algo. Escrever, apenas. Para que as palavras antes soltas no pensamento possam compor sentidos. Neste gesto, os poucos os cadernos vão sendo preenchidos e pensamentos materializam-se.
Foi num destes cadernos que pequenos textos poéticos começaram a surgir. Mas não uma escrita poética da qual eu estava acostumada a produzir, ou seja, uma escritura do meu lugar de conforto. Eram frases com palavras justapostas, inventadas, tecendo um significado outro, não único, e sim ambíguo e diverso. Diante desta estranheza de sentido, estes textos solicitaram-me um suporte diferente do papel. E foi o tecido que acolheu esta escritura. Passei a bordar estes textos. O tecido era o papel e, a agulha, o lápis.
A palavra escritura dialoga neste texto com o conceito do pesquisador e escritor Roland Barthes. Fazendo uma distinção entre a escrita e a escritura, Barthes (2007, p.20) afirma que a escritura faz do saber uma festa, ou seja, se encontra em toda a parte onde as palavras têm sabor. Enquanto a escrita está mais voltada para a representação, a escritura estaria mais próxima da apresentação, dito de outro modo, a escrita seria a imersão e a legitimação de um dizer único e hegemônico, pautado numa determinada realidade e que teria, portanto, um formato/conteúdo prévio e conhecido pelos cânones do saber; por outro lado, a escritura seria a fundação de outro dizer, muitas vezes não conhecido do ponto de vista da forma/conteúdo e que, ao provocar um estranhamento na língua, abriria a possibilidade de um dizer singular, próximo do que está acontecendo com aquele que escreve.
Essa abertura para um “dizer singular” escolheu também uma forma, uma materialidade singular. A partir de então a relação entre a escritura e o bordado começou a criar sentidos e desdobramentos em minha prática de artista e educadora. Ressalto aqui que esta relação entre as palavras “escritura” e “bordado” não se dá como uma metáfora, ou seja, numa substituição de significados e sim como uma justaposição, ou melhor, numa existência de um “lugar entre” estas duas palavras.
Uma evidência deste “lugar entre” encontra-se na etimologia da palavra “texto”, que tem sua raiz na palavra latina “texere”, que significa tecer. Segundo o dicionário, tecer significa “tramar, entrelaçar, fazer algo através da justaposição de fios” (CUNHA, 1986, p.759). Considerando esta acepção, o texto escrito pode ser concebido como uma composição, um tecido de significados. Elaborar um texto é tecê-lo com as palavras, tramá-lo, uni-lo, tal como num tecido os fios se entrelaçam. Quanto mais de perto olhamos para um tecido mais percebemos as suas complexas tramas. Na escritura, esta trama também está exposta, as palavras podem estar em diálogo ou em conflito, podem estar soltas ou apertadas, sobrepostas ou lado a lado.
O tecido que recebe o bordado sempre revela o gesto de quem o bordou. Seja pelo seu avesso ou não, o desenho de cada ponto traz em si uma memória gestual das mãos bordadeiras. Na escritura, o texto recebe o bordado da língua, o gesto de organizar, encadear e tensionar palavras e seus sentidos.
Segundo Flusser (2010:25), escrever origina-se do latim “scribere”, que significa riscar. O instrumento pontiagudo da agulha no tecido se assemelha ao instrumento cuneiforme, um estilete, utilizado para riscar/gravar uma superfície. O gesto de bordar é solidário ao gesto da escritura, pois escrever, em seus primórdios, se caracteriza como um gesto corporal, de deixar uma marca no espaço, de cavar incisões em um objeto.
A palavra “borda” pode também ser entendida como “margem”. Na escritura estamos a tocar as extremidades da língua, criando embates com estruturas rígidas e desgastadas e gestando novas formas de dizer, alargando as suas possibilidades, as suas margens.
No bordado, para evitar nós e embaralhamentos, não se usa uma linha muito grande nem muito frouxa. Na escritura, se lida constantemente com a tensão do dizer, com a justeza do dizer as palavras em estado de acontecimento. No bordado, uma das extremidades da linha deve estar sempre solta para dar mais mobilidade ao ponto, assim como na escritura, em que a linha de pensamento não deve estar fechada, encerrada em si mesma, pois os sentidos serão compostos durante o ato da escritura, e não antes.
Há também o ponto. Lugar onde os elementos se entrelaçam, se unem, se separam, ou seja, um desenho se faz. Na escritura, o ponto/a pontuação também tem este papel de criar respiros, descansos, voltas, espaços, ritmos, ou seja, desenhos. Um ponto apertado no tecido também pode ser identificado na escritura. Há frases que enrugam o texto, puxam a trama toda para si. A tensão da linha de pensamento é tão forte que todas as outras linhas se voltam para ela. Há pontos em relevo, pontos de preenchimento, pontos de ligamentos, assim como na escritura...
Foi com esta trama de referências que cheguei ao Ateliê de Palavras e Bordados. O ponto de partida era a instauração de um ambiente de ateliê, ou seja, um local de compartilhamento e trabalho coletivo. O anseio não era caracterizar-se como uma oficina, mas como um local em que todos se encontrassem em estado de criação e que os saberes de todos fossem a principal partilha.
De início trouxe uma questão/problema a todos: eu não sabia bordar. E, consequentemente, todos estariam livres deste “saber bordar” de caráter mais técnico e virtuoso. Porém, a proposição daquele encontro era escrever no tecido, com linha e agulha. O foco não era o bordado em si mesmo e nem a sua estética. Mas a junção da escritura e do bordado e quais eram os sentidos que podíamos extrair deste gesto. Sendo assim, teríamos que instaurar uma mesa de criação coletiva: alguns procedimentos básicos nós compartilhamos em grupo e, aquele que quisesse aprender a bordar um ponto específico poderia aprender com algum colega que soubesse.
Para ativar a escritura utilizei um texto da autora Maria Gabriela Llansol (1994) que narra a experiência de encontro com um aluno chamado Ad, que era “um fluir de si próprio, sem margens que o fizesse aceitar o é assim, porque é assim” (p.137). Neste texto, Llansol retoma diversos encontros que teve com Ad e se interroga profundamente após este dizer-lhe que queria ver Deus. O texto se desenvolve com pequenos traços de conversa com o menino misturado com sentimentos e afetos da autora.  Na sequencia da leitura, solicitei a todos que escrevessem encontros/acontecimentos que os colocaram neste estado de acontecimento, de questionamento, de tensão criadora.
 Compartilhamos então as palavras de acontecimento. Escolhemos as que seriam bordadas no acontecimento do tecido.
Na mesa, junto com os materiais, estavam dispostas algumas referências de bordados com imagens e palavras. Percorremos rapidamente também uma seleção de imagens de artistas que investigam o bordado e suas diversas possibilidades.
 No primeiro ateliê realizado, para “facilitar” a produção, levei tecidos já cortados no mesmo formato e no mesmo padrão. Porém, durante o encontro, fui percebendo que era preciso dar mais sentido à escolha do tecido, pois a proposta estava muito controlada e homogênea, estava faltando algo.
Se o desafio era a escritura, ou seja, se estávamos na chave do “sabor do saber”, era vital que houvesse sabor também na escolha do tecido, da sua cor, da sua textura, no tamanho da linha, no gesto... Percebi que estava limitando demais a proposta e, no encontro seguinte, já com outros participantes, levei tecidos de texturas diferentes e tamanhos diversos, bem como materiais mais diversificados.
Depois deste acontecimento pude perceber que todos nós temos memórias em relação ao tecido. Este não é um material “neutro”, a nossa história pessoal começa já com o tecido... desde que nascemos somos envoltos em um. É também o tecido que reveste o organismo, que é responsável por fazer respirar o órgão e realizar trocas com o meio exterior, compondo um sistema comunicante. É, também, o tecido que protege o corpo e que o revela...
Este gesto de abrir para a memória da materialidade do tecido instaurou rapidamente um ambiente de intimidade entre os participantes. Tanta intimidade que nos permitimos o silêncio. Cada um concentrou-se em seu gesto de olhar o tecido, costurar, escolher as palavras e bordá-las. Observei poucos com dificuldade com o material ou com o ato de bordar.
Enquanto propositora, fiquei questionando-me se estava “correto” este silêncio durante a criação. Estava acostumada a encontros com muitos diálogos. No meu imaginário de encontros “bem sucedidos” há sempre um ambiente de conversas, risadas, extroversão. E estes encontros não foram assim. Durante a confecção dos pontos, entre silêncios, cabeças baixas e concentração, vez ou outra aparecia um relato de uma memória com a costura, com o tecido, com o ato de bordar. Estivemos evocando nossas infâncias, as mãos de algumas mães, os saberes de alguns mestres.Tive que fazer um esforço para não me transportar para debaixo da máquina de costura de minha mãe, lugar em que eu ficava na infância, a brincar com os retalhos caídos ao chão, e lá ficar, esquecendo-me de estar ali, em roda, no grupo. Os relatos que iam aparecendo enquanto bordávamos ora se caracterizavam como um balbucio, ora como fiapos de conversa, ora como confissão... a cada aparição da voz eu tinha a sensação que o grupo se tornava mais grupo.
Iniciei o ateliê explicitando meu não-saber em relação ao bordado e terminei-o no mesmo fio do não-saber. O silêncio que se instaurou neste espaço foi novo, inesperado e, de certa forma, arrebatador para mim. Eu não sei significá-lo a ponto de afirmar que este é um elemento que deve fazer parte de um ateliê de bordado ou que se deve buscá-lo. Eu não saberia repeti-lo nem exigi-lo. Considero-o como um acontecimento.
Foi então que entendi concretamente a origem da palavra “página”, que em latim deriva da palavra “pagus”, que se refere ao “campo” e também a “paisagem” (CUNHA,1986, p 571). Uma página escrita/tecida pode ser concebida como uma paisagem. Talvez esteja aí a explicação... estar diante do aberto de uma página/paisagem é deparar-se com o silêncio, que aos poucos vai se presentificando como marca, gesto, palavra.

Referências
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2008.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FLUSSER, Vilém. A Escrita: Há futuro para a escrita? Tradução do alemão por Murilo Jardelino da Costa. São Paulo: Anablume, 2010.
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboalipzig 1: O encontro inesperado do diverso. Lisboa: Rolim, 1994.


6- (A) Bordar a Escrita- um encontro entre a narração oral e a escritura

(artigo publicado no livro: Narra-te cidade)

O desejo deste artigo é abordar relações entre a narração oral e a escritura a partir da experiência de ministrar a disciplina (A) bordar a escrita no curso de Pós-Graduação latu sensu A Arte de Contar Histórias- abordagens poética, literária e performática, realizado na Casa Tombada- Lugar de Arte, Cultura e Educação em São Paulo. Mais do que tecer contornos, dicotomias e tratar historicamente dessas duas práticas humanas, o objetivo é criar pontos de contato, encontrar movimentos de mútua alimentação, considerando a narração oral e a escritura como um organismo vivo que respira, que ora se expande ora se retrai, movido por um sentido vital, a poesia. Para isso, percorremos algumas imagens e conceitos de alguns escritores e pensadores como Roland Barthes, Maria Gabriela Llansol e María Zambrano.

Palavras-chave
Escritura, narração oral, poesia.

Respiração inicial
Cabe-nos, para sentirmos a primeira respiração do vivo, olharmos com olhos de início para o que chamamos de escritura. Uma derivação da palavra escrita, uma distinção que pode parecer preciosismo, mas aqui vamos considerar como necessária, como um posicionamento (com latitude e longitude) para marcar um território e, consequentemente, para que possa, com isso, existir.  A escrita pré-fabricada vendida nas grandes lojas de materiais de construção (aquele tipo de lugar que vamos quando já temos um projeto pronto na cabeça) já sabemos que existe. A escrita que parece mágica e que consideramos ser para poucos e iluminados seres, também. A escrita que precisa carregar todas as escritas anteriores e se mostrar homogênea e sem conflitos, também. Não é essa escrita que deseja abraçar a escritura.
Barthes (2007) chama a escritura (écriture) de o “gozo da linguagem, o seu Kamasutra” (p.78). Afirmando que a escritura faz do saber uma festa, ou seja, se encontra em toda a parte onde as palavras têm sabor. Enquanto a escrita está mais voltada para a representação, a escritura estaria mais próxima da apresentação, dito de outro modo, a escrita seria a imersão e a legitimação de um dizer único e hegemônico, pautado numa determinada realidade e que teria, portanto, um formato/conteúdo prévio e conhecido pelos cânones do saber; por outro lado, a escritura seria a fundação de outro dizer, muitas vezes não conhecido do ponto de vista da forma/conteúdo e que, ao provocar um estranhamento na língua, abriria a possibilidade de um dizer singular, próximo do que está acontecendo com aquele que escreve.
A escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, chama essa escritura de textualidade. Em seu texto Para que o romance não morra (p.116), diz que a textualidade se distancia da narratividade, que é o nosso modo já conhecido de escrever romances, pois se vale da narrativa estruturada, da imaginação emotiva, pautada pela verossimilhança, pelo que comungamos como sendo verdade/realidade. Para Llansol, tal prática de escrita construiu muitas pontes entre nós, trouxe uma partilha do imaginário, do “privado” de classes sociais que se “digladiavam” entre si. O romance, a narrativa, pôs as diferentes camadas sociais em contato, pois pudemos “entrar” nos quartos silenciosos cheios de tensões familiares com seus imensos tapetes e suntuosas cortinas. Porém, agora que esta maneira de dizer o real-não-existente já está conquistada, adquirida, ela pergunta: “como continuar o humano?/Que vamos nós fazer de nós? /Para onde é que o fulgor se foi?/ Como romper estes cenários de “já visto” e “revisto” que nos cercam?” (p. 120)
Para ela, a textualidade é mais que um modo de escrever, é um modo de estar vivo e estar entre as imagens que vemos, os afetos e as vibrações da linguagem que nos assaltam. E este ver é um ver criador. Não é um ver bidimensional e identitário, que tem o hábito de categorizar, descrever e enquadrar o que se vê, o que se ouve, o que se diz. Trata-se de aceitar o volume do mundo, de abrir espaço para suas camadas e suas transversalidades: estou a ver... mas esse ver vive entre o que se passou, o que está a se passar e o que passará por aqui...Portanto, esse ver não pode ser considerado como uma apreensão da realidade, jamais daremos conta da sua vastidão.Ver é fazer e desfazer. É criar linguagem. E criar-me (LLANSOL, 2011, 168-169). Portanto, ver é aceitar que há um mundo de mundos. É aceitar que criamos versões do mundo, os existentes-não-reais e, por isso é que criamos a nós mesmos. A textualidade é a criação uma realidade possível e não de uma ficção apenas. 
E, como versão do mundo, quase “incapturável”, quase derradeira, faz-se por meio de pontos de contato, pontos de luz, nunca é totalidade. A palavra faz-se nos intervalos dos alvéolos pulmonares, nos buracos de uma renda, nos espaços da copa de uma árvore. Faz-se como texto com silêncios e espaço em branco, faz-se como dizer de mão dupla, aberto, às vezes cortado, sobreposto, riscado, revisto, em queda livre. 
Para Lúcia Castello Branco, em seu livro A mulher escrita (1989), trata-se de uma capacidade de erotizar o discurso, de escrever com o corpo. E cabe pensarmos aqui, junto com Bataille em A Experiência Interior (1992), que o erotismo é a fusão com algo maior, com o desconhecido. É uma entrega sem garantias de retorno. Entregar-se à erótica do texto, ao gozo, ao dizer sem um querer prévio, ao caminho que se faz enquanto se caminha. Escrever com o corpo é escrever à flor da pele, pois o que é o corpo senão o seu contorno, as suas bordas comunicantes? Trata-se de uma escrita que está se fazer por meio dos afetos, nos momentos em que o presente se adensou, em que encostamos nosso contorno em um outro contorno, e as vozes puderam se amar, se friccionar, puderam trocar seus fluídos. Que deseja o indizível. Quando encontro a voz da janela, do pássaro, do cão, da folha e ela se diz sem a minha mediação. É esta a maneira de fazer “sexo com a paisagem”, como disse Llansol.
Para Deleuze, esse texto provoca em nós um tipo de eletricidade. É preciso “sair do sofá, da poltrona” em que se está. Exige-nos uma postura ereta. De prontidão que é uma espécie de submissão, não de ataque. Uma prontidão para a distração, para que algo possa se “achegar” em nós. E isso acontece tanto para quem escreve e tanto para quem lê. São textos que, segundo Leila Perrone Moisés, exige do leitor uma “leitura exigente”. Llansol dá ao leitor o nome legente, abrindo uma posição ativa do leitor, distanciando-o da história da leitura em que este sempre esteve em débito com o escritor, sempre agradecido, sempre levado por ele a algum lugar, por mais imperceptível que fosse. Enquanto legente, cabe a cada um preencher as lacunas deixadas pelo texto, cabe aprender a ler no momento em que está a ler. Não há uma escrita pronta e, portanto, não há um leitor pronto.  Trata-se de tornar-se passagem da eletricidade que Deleuze aponta. Uma eletricidade que nos retira o chão da representação do mundo. Uma eletricidade que nos retira do finito e empurra para o infinito.
A escritura está, então, próxima da experiência, daquilo que nos tira do esconderijo, daquilo que sentimos quando sofremos o mundo, dos nossos incômodos, quando, por instantes, nos pusemos distraídos e nos deixamos arrastar por um sorriso feroz, e passamos a nos ver dentro da coisa amada, e somos amados pelo amor. Escritura é essa teimosia em ser capturado pelo que é errante, em tentar fixá-lo e que sempre nos escapa.
E o que isso tem a ver com narração oral?

Segunda respiração
Essa segunda respiração também se alimenta de uma experiência de descontrole com a linguagem, de contato com o indizível, que se dá quando se encosta no rio da linguagem, pela fala. Mas, como disse Maria Zambrano em Porque se escreve (2000), não é a fala que quase sempre nos lançamos mão para nos “livrarmos” de um momento, para apenas darmos continuidade a uma circunstância instantânea que nos solicita. Dizemos. Mas essa fala mais nos afasta, nos desobriga do que nos põe em contato, em relação. Essa é a maioria das falas cotidianas, é a fala explicativa, a fala linear, histórica, hegemônica, a fala que mais abafa que abre caminhos.
Trata-se de uma fala outra fala, uma fala derradeira, que produz sulcos no ar, que é o som do silêncio a ser materializar:
  1. Domenico, personagem do filme Nostalgia (1983) de Andrei Tarkovsky, considerado como louco na cidade, faz um discurso em praça pública, montado em uma grande estátua. Quem o assiste são os mesmos loucos, que estão em seus mundos próprios e não se mexem, parecem não se afetar com o que ele está a dizer. Domenico diz: “não consigo ser uma só pessoa/sou capaz de sentir infinitas coisas ao mesmo tempo/ o grande mal de nosso tempo é não haver mais grandes mestres/(...)todos devem gritar que construiremos uma pirâmide/não importa se não a construiremos/ o que importa é alimentar os desejos/devemos ouvir as vozes que parecem inúteis/(...) temos que tirar alma de todas as partes como se fosse um lençol que cobre o infinito (...)”. Neste trecho já podemos concluir que o personagem Domenico não é um louco, mas sim um homem bastante lúcido que está a dizer coisas importantes à humanidade como um todo, mas que não encontra acolhida e ressonância em um mundo que está interessado mais na funcionalidade e na racionalidade. Após terminar esse inflamado discurso, é o corpo de Domenico que se inflama, ele põe fogo no próprio corpo e não aparece mais ao longo do filme. Sua fala se fixa em nós como um lampejo, como uma luz que acabou de estourar por excesso de energia.
  2. Um outro personagem, agora do livro A Montanha Mágica de Tomas Mann, que falava cotidianamente apenas palavras soltas, inícios de frases, pedaços cortados, sem conectivos. Em uma conversa, ele fazia interpelações assim: -seria muito interessante se....; - é realmente vital que...; sinto-me tão....; - considero que... e nunca terminava uma frase. Estava sempre sem um lugar próprio no discurso. E, quando os habitantes da Montanha Mágica foram fazer um passeio de cachoeira no meio das pedras, já muito próximos de uma intensa queda d’água, esse mesmo personagem começa a falar sem parar, encontra seu fluxo, encosta seu jorro da linguagem no jorro da água. E diz fluentemente. Pela primeira vez seu pensamento se pôs em movimento. Ele fala por alguns instantes ininterruptos, mas os companheiros não conseguem ouvir porque o barulho da cachoeira era maior. Mas disse. Jorrou.

A partir dessas imagens acima, cabe-nos a pergunta: encostar o dizer no acontecimento é aceitar que sempre estaremos numa luta final, num último suspiro? Sem nunca ver o chão?

Terceira respiração- lugar de convívio
María Zambrano nos dá o ponto de contato entre a primeira e a segunda respiração e, talvez, um repouso. Para ela, a escrita é essencialmente o lugar do enfrentamento da derrota sofrida pelo desmedido soltar das palavras na fala, que quase sempre nos vence. Pela escrita, vamos nos reconciliando, salvando as palavras da falsa pompa, da sua vacuidade e vamos dando voz ao segredo que quer dizer-se.Porém,existe um lugar na fala que é também capaz dessa reconciliação, de dizer o indizível, de segredos no êxtase, fora do tempo. Esse é o lugar da poesia. A poesia é o segredo falado. Trata-se de conservar no dizer esse salto, criando-o no próprio dizer. 
Esse seria, então, o encontro entre a escritura e a narração oral. A poesia que, segundo Jean Luc-Nancy, em Resistência da Poesia (2005), é a resistência à verborragia, ao desmedido que a linguagem é por si mesma, à sua indefinida expansão, à sua tagarelice constitutiva, cujo seu reverso é a exatidão sem resto. (p.43)
É de uma exatidão, de uma justeza que se trata. Quando nos deparamos com um encontro-repouso em que o narrar-dizer-escrever é uma abertura onde cabe o jorro, os buracos, os silêncios, os espaços em brancos. Mas é um jorro partilhado, não um jorro suicida, solitário. Há que se entregar a um não-saber que é de todos nós. Há que se deixar dizer. Há que se desfazer-se de si mesmo e olhar para o mundo. Dizer menos que mais. Há que se olhar para a cidade, para a casa, para o corpo dos afetos. Não o mundo real, nomeável, mas a cidade das intensidades, que pulsa e vibra.

Bibliografia
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2008.
BARTHES, Roland. A preparação do Romance, vol.I. São Paulo: Martins Fontes, 2005.  
CASTELLO BRANCO, Lúcia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro:Casa- Maria Editorial, 1989.
LLANSOL, Maria Gabriela. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
LLANSOL Maria Gabriela. Lisboaleipzig. Sintra: Edições Rolim, 1985.
NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia. São Paulo: Edições Vendaval, 2005.
ZAMBRANO, María. (2000) Metáfora do Coração e Outros Escritos. Lisboa: Assírio Alvim, ISBN 972-37-0348-3.

7- Entre os binômios
Desconfio daqueles que têm sempre o que dizer, dos que nunca sentiram dor, do Homem como centro do mundo, de quem acredita que Deus é a resposta, de quem diz que o jovem no passado era mais consciente e menos alienado, de quem tem muita pressa ou muita calma. Desconfio de quem pensa muito e de quem nada pensa. Desconfio de quem fala demais e de quem não tem nada a dizer.
Confio em quem fala sobre o que está acontecendo no tempo do acontecimento, em quem percebe que descondicionar o corpo do outro é tarefa que passa por si, que se demora no olho de alguém, em quem experimentou a conversa como caminho, em quem não separa teoria de prática, corpo e intuição, bondade e maldade, e não põe tanta luz nas palavras: verdade, moral e evolução.


Começar esta reflexão pelo binômio desconfio/confio é uma tentativa de organizar a quantidade de forças que jogam quando um grupo de pessoas se juntam em torno de uma tarefa comum: a formação. Perguntas que sempre aparecem: quem forma quem? Onde a formação se dá? Em que momento o aprendizado acontece?

Mas gostaria de ater-me à eletricidade de alguns binôminos. Começo com as palavras: confio e desconfio. Dentro delas habita a palavra fio. E esta talvez seja a palavra mais adequada para continuarmos aqui. Como numa torrente elétrica, com volume e massa, estar na presença de pessoas com abertura às possibilidades de encontro sempre faz desabar o corpo do ouvinte.

Os fios elétricos dos encontros nos cobram, acima de tudo, a presença. E é difícil reconstituir a eletricidade que passa pelo corpo nesta hora. Sabemos que a interpretação (que nos distancia do acontecimento) dissolve o privilégio da presença. E, portanto, é necessário instaurar outro discurso que recupere a intensidade desta teia.

A escolha aqui é dizer-se por meio de binômios ou pêndulos que se interconectam, a lembrar-nos que o nosso corpo não é estático e se move a partir do contato com seus extremos. Como uma pulsação que aparece e desaparece assim se configura o nosso coração: ora aumenta de tamanho ora é menor que uma noz.

Tomaremos impulso a partir da consciência dos limites de qualquer história a ser contada: ao apresentarmos o que aprendemos no espaço de formação já estamos em outro lugar, lidamos com a história dos fatos e não conseguimos segurar para onde a experiência nos leva. Em primeiro lugar: tornar-se educador é um processo de conquista. É uma negociação constante entre a Tradição e Traição. E esta disputa se dá no espaço interno, lento, cotidiano de escutar o que se diz, como se diz e em nome do que se diz.

Ao chamarmos a arte para conversar também nos deparamos com outro binômio: a estética e a ética. A arte nos cobra presença. E, pode parecer um paradoxo, mas, à medida que a arte nos cobra esta presença, ela também nos tira do centro. E essa é a Estética anunciada: tornamo-nos diálogo com a arte à medida que cedemos ao convite de estar com as coisas, para fora dos nomes, fazer parte do que não está dito ou sermos testemunha de outro dizer. E é neste horizonte que se revela outra Ética: a ética do estar juntos, das sobreposições, das concomitâncias, do compartilhamento de verdades.

Aí se mostra algo raro: o poder que todos nós temos da metamorfose. Somos seres mutantes que carregam uma tradição. E somente aquele que é capaz de manter abertas as vias de acesso entre os homens (Elias Canetti) é que vê a oportunidade de saltar. Ou seja, a traição da história só é possível quando nos inserimos numa tradição.

Mas no espaço do encontro, qual o discurso correto? Como usar a palavra adequada, qual a postura mais indicada? Nestes três anos de experiência acredito que um dos maiores aprendizados foi encurtar a distância entre o falar e o agir. O discurso convidado para o encontro não é o discurso explicativo, não é preparação para a vida, simulacro de uma situação real ou resolução de situações hipotéticas. O discurso convidado para o encontro é aquele que instaura um “corpo político”, ou seja, um “corpo do acontecimento”, no tempo presente. Como se realizássemos o exercício de atenção constante, para falar do que está acontecendo (e nos acontecendo) e assim estar na dignidade do acontecimento. Como diz Fernando Bárcena: acredito que estar à altura do que nos passa é algo como aceitar o acontecimento e nomear a despedida. É despedir-nos de algo, morrer em algo e nascer para outra coisa. (A dignidade de um acontecimento. Sobre uma pedagogia da despedida)

E neste morrer e nascer é possível experimentar que a verdade não está na disputa da razão, ou seja, naquele que quer sempre “ter razão”, mas está no centro da roda, quando o sentido surge aos olhos de todos, para quem quiser colhê-la.

Permitimo-nos ler nesta horizontalidade. Pois todo grupo é um texto a ser lido. Convivemos e naturalmente passamos a ler os corpos. A configuração da sala é uma frase a ser dita. Arrumar o espaço é polir as palavras. Indicar leituras, imagens e referências de artistas é sublinhar este texto, pinçar o que há de mais intenso. E assim se faz a leitura da realidade, e neste pequeno contexto de criar uma língua comum se experimenta uma política, a micropolítica.

E uma das primeiras tarefas para não acomodar-se nesta “língua comum” é estranhar as palavras, questioná-las, debruçar-se um pouco mais demoradamente nelas. Tanto as mais rotineiras como aquelas que fundamentam nosso modo de viver: a palavra sujeito, a palavra personalidade, a palavra identidade, a palavra poder, a palavra homem, a palavra educação e tantas outras... e assim entramos no campo da macropolítica.

E, por acaso, não fazemos política quando encontramos nosso modo próprio de dizer e falamos por metáforas, por imagens, por blocos de sentidos ou de modo entrecortado? O que se conta aqui é não subestimar a capacidade do outro de avançar poeticamente na fala e no sentido, neste texto que se inscreve no encontro. Para ler a realidade é necessário lançar mão de tudo o que se tem para dizer. Aqui se encontram a poética e a política.

E quem somos? Educadores? Adultos? Jovens? Homens e Mulheres? Aprendizes? O que se pensa disso quando a arte/o espaço da conversa acontece? O que se quer é estar em permanente espaço de disputa. Na urgência dos sentidos. Atuar na realidade, negociar com outras formas de se organizar e intervir. E é saudável experimentar a criação de pequenos espaços de convívio quando eles acontecem.

Como no mito de Sísifo estamos condenados a classificar eternamente o mundo. Até que o inesperado fura os esquemas de padronização em que nos submetemos. Eis a boa nova: somos texto e podemos ser re-lidos. E, como afirma Barthes, só a releitura pode salvar um texto da repetição.

Neste espaço de encontro/desencontro é possível o plural de que o sentido é feito. Está posto o desafio: romper com o modo de pensar de quem dá e quem ganha. De quem oferece e de quem recebe.
Um aprendizado?
Estar em formação é jogar o jogo dos binômios.
Para não se ler em tudo o que se faz, sempre a mesma história.




8- Encontros com Métis

Bolsa Funarte de Criação Literária 2012




da ponta da gaivota, rio Andirá
no coração da Floresta Amazônica, em Barreirinha
o poeta Thiago de Melo diz:
a gente escreve poemas. Nem todos têm poesia





Índice


Introdução


I- Pássaro Branco

II- Instantes que cabem ou caem

III- Sinais

IV- Opereta

V- Áqueles

VI- Meio Dia

VII- Sete samurais com inserções







Introdução

Começou com a leitura do livro Métis, As astúcias da inteligência (Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant), ou, mais sinceramente, com a leitura de mim naquelas páginas. Era maio de 2010 e fui arrastada. Falo desse livro como se fosse coisa, monolito, que criou vida e se desprendeu. E este encontro não poderia ficar apenas comigo, era preciso anunciá-lo. A deusa aí está. No roubo do livro, na escrita poética assumida, na junção de frases, no encontro com as pessoas, na busca por conversas reais. Aproveitei para levar porradas, para sentir o cheiro do olhar das pessoas que tanto mirava. E expus-me de um jeito sem volta. Era claro que eu estava sentindo-me.
Eis o embate com toda a minha incapacidade de escrever. Falar da experiência com o outro era por as palavras para dormir.
Porém, as entrevistas foram dando-me coragem. Encontrar alguém é saber. Jamais havia feito isso antes. Escrevia quieta em casa, olhando pro papel. Passei a escrever com o ato, a escuta, escrever escolhendo o outro, troquei de roupa, vesti-me de novo...
A proposta no inicio era relacionar a deusa métis com o jeitinho brasileiro: quando as fomes se encontram. A fome de conhecer com a fome de manter-se vivo.
O livro sem a barriga não sobrevive e vice-versa.
E parti para encontrar-me com pessoas apaixonadas.
Era isso. Vi que era esse o caminho. Peço licença para falar da deusa, continuar aceitando que ela apareça e se manifeste aonde quiser. Eu vou continuar evocando-a, a cada encontro.
No caminho, nomeando-a de Astúcia, logo notei que teria que tratar com Deus e o Diabo. Talvez eu não tivesse tanta vida para isso. Também persegui o caminho da palavra Intuição, na imagem do pássaro branco, e este me pareceu o melhor caminho, porém, é da natureza da intuição não mostrar-se... o caminho das sutilezas, aquele onde o peito fica maior, da vontade de sorrir por dentro... não se sabe aonde está...
Poemas, arrastamentos, epidermias. É preciso fazer da escrita uma companheira da pele. Listando palavras, um novo dicionário. Indo sem saber. Transcrever as entrevistas foram verdadeiros enfrentamentos: com minha precariedade e o deslumbramento inevitável.
Fica a sensação de ser tomado por algo e o único recurso é lançar mão de imagens, carne de palavras, tempos de respiração, ritmo de leitura, inversão de sentidos e sinestesias.
Métis é a deusa da superfície. Aqui e agora. Porque lê onde está.
Fui da poesia à conversa e da conversa à poesia.

E foi assim que percebi:
o mundo começou com a leitura




Pássaro branco



Abrir o caminho sobre a boca do mar
escrevo
ensurdece a vontade de voltar





I


Saber o tamanho de um pássaro disponível
andar sob a linha de pesca
deitar os olhos nas larvas que se enrolam
e o que se tem

Adequar o vestido para a ocasião de nascer
nascer agora, sob uma espécie de ventania
empurrando os mortos para os muros, murmúrios

Estudo as horas que se cercam de círculos
ando com as flores da rua cingindo as casas
e sei como duas orelhas se tocam no amor

Era por minha conta: raspar os restos de uma fome real e devolver no cio
qualquer prato de abelha quente




II



querendo o fogo, espiamos a noite
que dorme com cheiro de lobo marinho:
Mercúrio e língua movente
pernas quentes de correr o rio que escapa
ao longe, um homem lança a isca
e conduz o pássaro ao início do dia





III




o cheiro de lontra com a barriga na pedra é do mesmo peso que a tua mão procurando o ventre. O destino da carne é afogar-se em ato





IV



Não há pássaro que antecipe seu vôo
Peso ou medida que anuncie para onde
O que se ergue de um pouso inesperado, ergue o repouso para mais do que alto
Estranha tranqüilidade de permanecer antes do chão se abrir






V



nas temporadas da estrada
à beira do açúcar
no azul dos potes abertos
amam-se
os nossos segredos horizontais





VI



sépia de belos cabelos e numerosos tentáculos
terrível deusa de humana voz
a única que, sendo peixe
conhece o branco e o negro do mar



VII

As mãos se fecham no mesmo instante em que as coisas jorram. Os pés frios escorregam nas pedras quentes. Por mais que incendeie, a vida é rente. Dente na faca. Anjo atravessado. Morte transportando morte. Até que o vinho renove a explosão da uva. E o trigo cante a aparição do pão. Todo corpo é gota da cura.
E sempre começa.





Instantes que cabem ou caem



I

Enraizar-se: à medida que o fogo vai rosnado, a baia vai erguendo-se sublime. Até o som muda, tapa o escutar. O corpo é despregado. Nada fricciona ou faz lembrar a distância entre você e o vento. O fogo é um animal bom, um burro puxando a carroça. Da cesta do balão não se vê os pés. É o mundo de fora que entra. Vai soltando a linguagem, colocando mais ar nos furos do bolo.

Lá em baixo, um cavalo correndo de um lado para o outro. Cego, sem a minha eternidade. E meus pés de gelo colaram no chão de brasa. Era ele carregando as caixas da feira, catando as laranjas de um campo minado. E fazia andar o movimento.
E é nesta hora, por toda a superfície, que arrancamos com as mãos a raiz que se espalha morta, e descemos, descemos, descemos. Até onde o que nos olha se mostra. E volta.




Tirar a mão do fogo: houvesse qualquer medida, ou distância exata para levar-nos de um passo a outro, eu diria: era uma senhora gorda, sentada com os pés descalços apoiados num banco, no parque de diversões. Ao seu lado, uma criança, igualmente sentada. Os dois lambiam seus sorvetes. E estavam. Como a faca ama a superfície, como o sol mastiga o tempo. Os pés podem.




II

Procedimento curvo: ou quando os primeiros navios querem se soltar. É tempo dos limões caírem e o cheiro de molusco atravessar a ponte. É tempo do esforço contido no ato de cometer-se em pequenos pedaços, achar um modo de continuar. É tempo do rio a correr em plena garganta. E encontrar a clave de sol escondida até a última infância.




Matei um rato: Fazia um som de corte na mesa e era ali o local da costura. Risca de giz no tecido negro. Eu alinhavava e soltava. Qual o instrumento, onde acontece uma mulher? Ser, até na dobra dos joelhos. Até aonde o peito voa. Ser, na toalha quadriculada, no pote de manteiga, faca equilibrada e saco de pão amassado. Ser, até afiar o corte da manhã.
mesmo a um custo
Até traçar a rota e amassar as uvas

Até estancar o fim




III


Acídia: Os homens padres da época medieval bebiam na hora do almoço e dormiam a tarde toda, noite adentro. Jeito simples de explicar a canseira do espírito. Vicio e seqüestro de si. Falimento, fé e alimento. Um comer por dentro.





metáfora: afiava a ponta do lápis como quem corta a cana, mas não se arranhava nas folhagens. Seu gesto escorria por um tempo, a provar a si mesmo, como árvore principal. é esta a hora
de recolher miniaturas esquecidas nas esquinas, pregar as cortinas dobradas antes dos pés nascerem.
A olhar de frente o muro que escorre negro. Na ponta de quem fala. E faz.




IV


Retidão: veja,
não estamos na idade de pensar o mar, somos este. Passamos milênios a brincar de navegar os nomes, escuta. A Voz é aquela que roça o corpo nas folhas da palmeira. Não me convide a voltar à terra, descansar na ferida branca ou ninar as surpresas da areia. Eu vou,
mas para falar de joelhos, há duzentos anos, da casa térrea, robusta e líquida em que nos tornamos. Mesmo sem querer.





Folha ao vento: os mujiques e as calças curtas passeiam em aberto. Era eu, éramos nós. A ler em campo de sol, a ler sob a pele. Corre, que a ciência vai demorar um pouco. E fugitivos, aprenderemos a faculdade de cheirar os dedos.




V


Matéria bruta: A casa era feita de pão, vinho e faca. A santa língua da majestosa fome. Eu disse sim, vai durar.




Monolito: de volta à casa de sóror Juana invento a mitologia da infância.
O primeiro sapato, a cena derradeira, era maio. Ela chega e aquieto. - Eu sei a névoa que te persegue-. Era hoje o espaço da vida? A palavra te deita na esteira. Vi esta mulher de horizonte rasgado à mão. E o que vai se tornando por entre as pernas?
Na casa de sóror Juana só há um perigo: que te escutes.


VI

Evocação: e eu te digo, Verônica, é intermitente, porque entra e sai quando quer. É o último passo para a fusão total, momento antes de descer rio abaixo. Aqui não habita a análise combinatória ou a arrumação de dados. Falamos da fundação, Casa de Solda. Amálgama.
Corpo gasto em outro corpo gasto. Guardião de um único sim. Última cena do filme A Partida: a escritura é aquele momento exato de dizer: eu posso, eu posso preparar meu último pai, estive a vida toda para isso.
Na costura dos silêncios, recebe-se tal missão. Aceita-se ou não.


Métis: língua de fogo em terra molhada. Ora ambígua, ora espessa revestida de movimento que não cessa. Desliza na pele de uma foca. Corre, queima, chama. É vento, tigre, pássaro, raposa ou serpente. É aquela que retorna sem pele. Depois de um dia quente recolhe-se em pequenas lambidas. A renovar dos ossículos da areia às franjas do mar.




VII


Ulysses: já ouvimos poemas e museus em excesso. Voltemos. Trazendo nos ombros mulheres, crianças, picadeiros e porcas. E tudo o que amamos mais do que o necessário. Ao dormir eu te preparo, Ulysses, um chão de sedimentos com mel, cimento e café seco ao sol, para ouvirmos, Ulysses, o canto do homem a certa distância.



Pé de mamão: sim Monsieur Teste, plantaremos pés de agrião com as iniciais de seu nome na soleira da porta. Ao entrar no dia poderás limpar os sapatos com um pouco de terra fértil.




Conversa: és fenda da morte




Sinais


Foi então que disse ao horizonte: receio ser largo demais para ti

#

e ter uma curva para morar

#


ousar aumentar de tamanho


#

cheirando o sangue antes que coagule


#


na estante de livros sagrados ao lado dos tiroteios no deserto


#

onde ultrapassa o dia? Este horror para enxergar?

#

ou uma amora: primeiro é branca e depois vermelha. A terceira é a cicatriz do sim



Opereta



Cena: olhar do terceiro samurai escolhido para defender a aldeia dos plantadores de arroz

Gosto na boca: comer ovos de peixe sabendo que é o último alimento

Música: tenor da música n.17, paixão segundo São Mateus, Johann Sebastian Bach

Cor: os olhos de Isabelle Ruppert enquanto mata o pai



Cena 1:


I
Michel Melamed:
por esta paixão e esta fé tão desmedida
o preço é justo. O vão, o abismo, é justo



Luiza Christov:
eu era a autora. Eu descobri que eu podia inventar qualquer coisa, íntima e subjetiva, porque eu tinha a fantasia de que existe o trabalho ideal. Mas não existe! é vazio.


Gilberto Mendes:
tinha um cunhado que na época me encostou à parede e disse:
ainda não percebeu que você é músico?



Fanny Abramovich:
É mais ou menos isso que eu estou tentando fazer com você



II



Nelson de Oliveira:
como se eu jogasse o I Ching, é o acaso que decide



Joana Zatz Muzzi:
a gente desenvolve alguma coisa que é invisível
não consigo nomear o que faço




Mariana Galender:

acontece quando encontro a imagem
nunca sei aonde ela está





III
Zoioomc:
decidi vender poesia ao invés de balas




Gilberto Mendes:

trabalho como um sapateiro... esta imagem não é minha, é do Stravinsky. Perguntaram como é que ele compunha e ele respondeu: como um sapateiro, nas horas certas, sento ao piano e fico trabalhando ali..., como o sapateiro pregando prego nos sapatos, a própria matéria sonora é a inspiração. Mexer com a matéria é o que me motiva.




IV


Gilberto Mendes:

Para escrever é preciso a palavra, mas o que vale é a invenção, a construção da frase, aí entra o fator arte, pois as palavras que você vai usar, a ordenação das palavras,
é arte.



Luiza Christov:
Mistério é um lugar que a gente vai se aproximando



Nelson de Oliveira:
Ela realmente pega no ar


Michel Melamed:
Se é uma certeza descomunal...


Chellmi:
Eu vou à milhão, nessa hora eu sou um boxeador...



V


Fanny Abramovich:

Eu sempre segui um pássaro branco,
Se não tiver, invento um!


Fátima Freire:
Em tudo e em qualquer coisa existe um time
É impressionante porque tem gente que sofre na pele por perder o time




VI

Phillipe Blue:

Até alguns anos atrás eu achava que todo mundo conseguia fazer qualquer coisa, mas hoje eu acredito que existe muita diferença nas habilidades, não é só o estudo e treino, tem alguma coisa a mais


Nelson de Oliveira:

Conforme você vai conversando com as pessoas vai notando que existe um subterrâneo mais rico



Michel Melamed:
Porque eu tô indo a mil por hora




VII


Luiza Christov:
Aprendi mesmo pelo estômago


Michel Melamed:
A ruptura é constante
Não tem começo nem fim



Fanny Abramovich:
Viajei o mundo com meus olhinhos
É isso! Um olho que lê, um olho que lê!



Nelson de Oliveira:

Um fulano de 26 anos está morando numa árvore


Luiza Christov:
Esta frase me sugere a luz. Não tratar com tanta luz o que deve ser tratado com menos luz....



Nelson de Oliveira:
Muitas vezes o sol do meio-dia ofusca, você não vai conseguir ver os detalhes, você vê um clarão, algo mais difuso. O sol da manhã é mais delicado...



Luiza Christov:
É tão recente que tenho os nomes



Pepe:

O que eu quero me referir é que hoje em dia não tem time que ataca com seis que nem o Santos atacava. Por isso que a gente fazia sempre mais de 100 gols. O Santos se preocupava em fazer 3, 4, 5 gols em cada jogo. Ia pra frente e não se importava se tomasse um ou dois.


Michel Melamed:

Descobri que a ruptura é o lugar de conforto



***


Não vês que o silêncio é isso? Falar das coisas do presente



Vou escrevendo
até pingar a última gota de ressurreição


Enquanto isso, o mestre retira-se da sala



Cena final:

a mulher limpa os sapatos
e retira a terra debaixo da unha


Àqueles




I

Geralda era benzedeira, tirava o quebranto com uma folha de arruda e fumava escondido. Raimunda era religiosa, construía pássaros e borboletas de papel para prender na gaiola. Basta um pouco de pó e sol seco. Dar banho num homem cego, velho, negro e doente, carregá-lo nos braços, entrar em sua casa à noite sem bater e farejar o que deve ser feito.




II


escrevia com as unhas
no corpo do texto
e a superfície cedia
corpo adentro
da carnívora palavra





III


Existindo já era a forma de ser aquilo que queria, não esforçando a feitura de um outro mais bem acabado. Sem se mover já estava sendo. O olho do outro imediatamente me dizia quem eu era. Tantas vezes tentei ser outra e tantas vezes fui a mesma.




IV


Como um corpo salgado de tanto escavar a luz
sinto que transitas
passas apressado, a folha cai
uma voz cristaliza-se na janela

Por aqui as abelhas vivem para tocar trombetas
abrem os ouvidos em soluços e solstícios
na procissão de flores suicidas ao mar
encontro o lugar da montanha onde a neve pára

neste aconteço de perder e achar
é bem mais perto meu lugar de risco




V

O caminho

Numa noite escura, caminho adentro
Os discípulos iam assustados de abandono
E foi então que se aproximou um homem e lhes perguntou:
-Porque é que vocês estão tão tristes e se lamentam?
Eles responderam:
- Ora, você não sabe que o nosso mestre foi assassinado?
E foram lado a lado, a conversar sobre os últimos acontecimentos. Falaram das mulheres batendo no peito, de suas crianças crescendo sem metáforas e dos animais a urrarem de sede.
Ao chegarem perto do vilarejo, o desconhecido ensaiou em despedir-se, mas os discípulos disseram:
- Fica conosco, há comida para todos.
E, aceitando, sentou-se com eles e partiu o alimento.
O gesto daquele homem inaugurou o gesto do homem do homem e repetiu-se em claridão.
Foi então que perceberam. Dizendo:
- E por acaso enquanto ele caminhava conosco, não sentíamos o nosso coração arder?




VI


- eu conheço o Ângelo. Tudo o que ele se propõe a fazer faz muito bem. O vagabundo era pichador violento, depois quis grafitar e grafitou muito, só com o que tinha, roubava tinta pra grafitar. Inventou de andar de bicicleta, andou muito, em tudo ele era bom, tudo ele leva ao extremo. Com pouca coisa. Tudo dele era o mais zoado.
- Ele levava a sério.
- um cara talentoso. Você conhece ele por várias formas. Tem gente que o conhece como o cara que anda de bicicleta, outro que o conhece como o cara que picha, outro como o cara que tá fazendo umas coisas erradas..., mas é a mesma pessoa.
- Ele entende do improviso da vida...
(conversa com Chelmi e Zoioomc, em )




VII


- o mágico da praça da sé, faz mover a mão que não é sua
- o homem prega a religião de manter os homens deitados
- pai, mulher e criança ensinam matemática no viaduto do chá
- enquanto um chinês faz macarrão com as mãos na Liberdade
- na feira do rolo, com peças no chão e outras no bolso, as conversas aconteciam em camadas
- o homem mora na árvore para não ser morto dormindo
- na rodoviária no momento em que você se desprega do chão
- a rã quando fica imóvel, já é ataque
- a Astúcia é de Deus e do Diabo
(inscrições no corpo, deste janeiro de 2011)




Ao meio dia




I

Notar que não há santos, gênios, nem mestres
Há homens santos, homens gênios e homens mestres
Mãos grossas de enfiar a semente em terra dura





II
Já aconteceu de encontrar-me inteira com a tua face
São dias de sol, os cabelos ventam, descalça. Tudo se amarela
E eu te chamo de Deus que toca a pele, na falta de juízo, amarelamente




III



Um salto por vez. Nunca o fatal
Vivo para uma refeição que nunca será comungada
A eucaristia final é terrível, não será praticada





IV

vejo o brilho nos olhos de quem está me escutando e vou a milhão, nessa hora eu sou um boxeador... mas precisa do outro pra sentir a vibração. O que me faz astuto é o próximo.



(Chellmi)



V

jogou a moeda no poço e ela caiu-lhe nas mãos. Como esperar a palavra certa, se a voz emerge no jorro da fala? Não se entra na vida ao nascer. Era invenção a cada outro.
E levantou-se, como o mar se ergue para alcançar o sol.





VI


somos fios desencapados que se encontram e se despedem
exaustos de abrir




VII


há uma hora no dia
em que os cabelos escurecem
as uvas amarelam
e o azul é fértil

há uma hora no dia
que não se rumina mais
Luz acesa. Pele de pássaro
gesto desprendido
rapto de deus da solidão





Os sete samurais
com inserções



- Esses teus ossos te importam?
- Sim, conto um a um antes de dormir.
- Então não venha. Para o Outro, é preciso ofertar do fio condutor às extremidades.
- Mas qual a casa, o gosto, em quantas roupas cabíamos em cada encontro?
- Veja, a fala é nascença. O que escrevo queima a mão no fogo. Eu te direi em palavras lavradas o que agora é o pó fértil do mundo. E continua a dar.


I


Luiza Christov

Havia duas mulheres que sonhavam a metade de um sonho
no mundo, os que habitam vão misturando-se
E na parte interna do horizonte está o pequeno barco,
que nos aproxima do próximo encontro
E ela sobe
A viver, se for de desejo. Estamos na sala em que ela trabalha. O sol havia chegado, era a hora de despir-se.
Pergunto: onde está?
E ela diz:
- Cada vez mais na intuição. Na sala de aula. Já aconteceu de um aluno falar: “Pára a aula! Eu preciso saber como você chegou nesta resposta!”, e ele me instigou tanto que eu respondi: “Eu sei da onde eu tirei, foi uma experiência mediúnica, estou incorporando um espírito!!!” , sinto na sala de aula que eu consegui, não era a minha razão, eram outros radares que estavam agindo, ou quando sem explicar, eu escolho as poesias, textos e imagens e não estavam muito explicito qual era a intenção. Aí tem uma astúcia.
- De não querer fazer a cabeça do outro, da escuta, associado ao prazer de aprender e ouvir o novo, mas isso não foi uma elaboração.
-O que tive que aprender mesmo foi a organizar, sistematizar, oferecer algum sentido durante as aulas, mas de um modo em que ele não silencie, que não feche, que seja porta de abrir...
Isso é uma dialética. As pessoas que estão numa aula querem algum sentido, querem começo, meio e fim. Mas não dá só pra puxar tapete..., é preciso organizar.
- Ou seja, construir a fabulação. Nilson José Machado, uma grande referência para mim, é da área de matemática, pesquisa epistemologia e didática. Ele estuda a metáfora, os modos de dizer. Para ele, o professor é um fabulador, um contador de histórias, é aquele que aprende a preparar boas histórias, que sejam portas de abrir...
- O mais importante é saber que é uma história, e não A Historia. Que esteja dito que é uma seleção, um modo de contar, que procura deixar os deuses inspirarem....


Então, se enfrentarmos, Luiza, as letras de vidro,
Amanheceremos outra vez




II



Nelson de Oliveira

Era final da manhã, no café da livraria. Queria ver aquele que escreve. Aonde aparece?

E ele diz:

- Eu me apaixono pelas coisas e tomo as decisões de acordo com a taxa de paixão e prazer que determinados projetos, trabalhos e pessoas me provocam. Creio que essa é a minha astúcia. Não é a astúcia objetiva e racional, não é a astúcia do economista, ou do investidor do mercado financeiro, ou de alguém que trabalha numa agência bancária. É a do artista, do escritor... A de Dioniso...

Pergunto: tem alguém?

- O Ulisses do poema do Homero, que era conhecido justamente por sua grande qualidade: a astúcia. Ele era o cara esperto daquele grupo de saqueadores, de piratas. Gosto muito dessa figura. E essa figura do sujeito astuto, daquele que vence pela inteligência e até pela malandragem, raramente vencendo apenas pela força bruta, se multiplicou ao longo da história da arte e da literatura.
-Sherlok Holmes é a astúcia em pessoa. Nunca abre mão da intuição. Pra resolver um caso, quase nunca usa uma arma, quase nunca entra numa briga, ele simplesmente observa a cena do crime, colhe umas evidências, vai pro seu apartamento, começa a fumar seu conhecido cachimbo curvado e a tocar violino, justamente pra que as musas se aproximem e sussurrem dentro de sua cabeça uma solução.


No final da conversa, recebo uma sacola com livros de poesia. Nelson inscreve-se.




III




Philipe Blue

Eu nunca tinha visto um gesto tão perto. O impossível tão leve. E escorria ventilado.

Pergunto tudo o que podia.

Ele responde:
- A mágica dá certo quando as pessoas percebem que eu não estou desafiando-as, estou apenas querendo diverti-las.
Se eu me apresentar como um cara que desafia as pessoas, elas vão querer me desafiar, por mais que elas não tiverem entendendo, elas vão querer me desafiar.
Mas se eu mostrar que eu quero somente diverti-las, as pessoas vem comigo, torcem pra dar certo, essa é a verdade.

E também o Denis, produtor do mágico, que via:

- Eu acho que o Phillipe tem uma astúcia: ele repara no jeito das pessoas, nos detalhes das pessoas, tem uma facilidade para imitar, isso é uma coisa que ele não usa tanto claramente no trabalho, mas essa visão o ajuda a sacar as pessoas e usar desse conhecimento na hora da mágica.
Ele sabe lidar com os diversos tipos de pessoas e não ser arrogante, saber fazer o cara parar de incomodá-lo sem ser rude, de um jeito que é muito peculiar esta é uma das principais características que o diferenciam, ele sabe lidar com uma pessoa humilde, com uma mulher, homem, criança, idoso, de um modo peculiar... É como se ele fosse um espelho da platéia, devolve para o outro o que o outro é.


O Philipe continua:
- Muitas vezes a mágica não dá certo e me perguntam se nunca aconteceu de algo dar errado, mas pessoas não percebem que deu errado, porque eu faço de uma outra maneira e todos acham que era aquilo. O cansaço mental é muito grande, a astúcia é quando eu percebo que alguma coisa não está dando certo e penso no plano B, plano C na hora. Não dá pra voltar atrás.





IV

Pepe (José Macia)

Na barbearia do Didi, em Santos, Vila Belmiro, com imagens na parede de homens que jogaram o futebol, tomamos um refrigerante. Ele sabe do feito,
Tem um corpo encarregado.

Pergunto como conseguiu.

Ele vai:
- Ensinar a jogar, ninguém ensina, você pode corrigir os erros, ensinar o jogador a chutar melhor com a perna esquerda se ele não chuta direito, mas se tiver pensando assim: “olha, vou fazer do meu filho um jogador de futebol” ... tchau e benção, você não consegue...se ele não tiver dom, não consegue.
Em São Vicente, descalço, eu era muito driblador, e quando eu coloquei a chuteira eu senti que meu chute ficou forte, então foi uma questão de treinar bastante, acabava o treino eu ficava treinando com os goleiros, ficava chutando de fora da área e o meu chute realmente começou a ser comentado na equipe profissional como o canhão da vila, o jogador que tinha o chute mais forte no futebol brasileiro. O professor Julio Mazzei, numa determinada ocasião, ele era o nosso preparador físico, mas era muito científico, ele conseguiu examinar a forçado meu chute, que era de 122km por hora, então você vê mais ou menos a velocidade de um carro a esta altura, então... só pra você ter uma ideia, o Roberto Carlos chegou a 109 km...e vê como ele chuta bem, né... então um locutor daqui do Santos, chamado Ernani Franco, quando eu comecei a fazer esses gols de falta, de fora da área e tudo, ele me apelidou de canhão da Vila, um apelido que eu carrego até hoje.
O futebol na realidade mudou muito do meu tempo pra cá, até que o Santos hoje tem uma equipe ofensiva, mas o que a gente vê na maioria das vezes é que se tem equipes muito defensivas, muita marcação, o futebol no meu tempo havia mais espetáculo, nós tínhamos 05 atacantes: Durval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, e o Zito era chamado na época, o Zito era nosso médio volante, ele era chamado de o sexto atacante, então... o que eu quero me referir é que hoje em dia não tem time que ataca com seis que nem o Santos atacava. Por isso que a gente fazia sempre, todos os anos, a gente fazia mais de 100 gols. E a defesa que as vezes era comentada que não era boa, não era nada disso, é que ela era muito sacrificada, o Santos se preocupava em fazer 3, 4, 5 gols e não se importava se tomasse dois.





V


Michel Melamed

Foi aqui que aprendi a matar um pássaro e assumir o vôo

pois a palavra é nua no rio

e seu arrastasse o leito comigo, tocaria o fundo?
o sentido é meu último desespero
mas a tua palavra é corpo água
enquanto se deita não há de parar


Onde respirar?
E ele responde:
- Quando você diz que o nosso encontro tem que ser poético, ele já é, não precisa colocar nenhum componente para ser poético, porque ele já é um encontro para o seu poema, para a sua obra, ele já é a sua obra, você já começou a escrever.

- A única convicção que eu tenho é a paixão. É a paixão. Por tudo, eu diria que este é o sentido da vida, da minha vida, porque existe um momento que acontece alguma conjunção, um engate entre um momento seu e uma acolhida do mundo. Algo se constitui, algo nasce, e talvez exista este cupido, em que acontece este afeto, e torna um turbilhão, e aí é maravilhoso porque todos os outros problemas como o da moeda de troca em qualquer nível, qualquer tipo de coisa que não seja aquilo é uma ninharia, mesquinharia, ou qualquer problemática, tudo se torna tão desimportante..., a conta que você tem que pagar, o horário que você tem que dormir, a pessoa que você tinha que ligar... a vida fica....

E você acha que dá pra ser todo dia assim?

- Não, provavelmente não, provavelmente não. É que a gente fica na expectativa disso, então tem a tristeza por não estar e tem também o luto, é irrecusável, o luto é irrecusável, tem o luto.

- Sempre que acontece este luto pós ruptura e que a nova ruptura se aproxima, fico como uma criança me lamuriando, me questionando se não há uma coisa certa, de que não tenha a instabilidade tão sonhada, quando você se vê instável novamente, você fala: cadê a zona de conforto, cadê o paraíso, cadê o julgamento, cadê o juízo final, cadê a redenção..., eu fui lá, eu me imolei, eu me doei, eu morri, eu morri, caralho, eu morri, eu morri pra caralho, eu já morri várias vezes, por isso que eu acho que é retardado, uma coisa infantil ou canina, de achar que eu vou ganhar um biscoito depois, entendeu... e é lógico que não é assim, eu morri porque eu vivi pra caralho, foi incrível tudo..

- Por isso é que a paixão é encantadora: o tempo todo..., a condição, é uma condição instável de não saber, e ai você descobre um dia que você foi pego por uma paixão, e a paixão é o que te salva, momentaneamente, desse caos, e essa é a questão: qual é a condição natural? Você é como? Você é você quando está apaixonado ou você é aquele quando não sabe de nada, e está rezando para que Yemanjá te mande de novo a paixão? Qual dos dois é você... você é o marinheiro que falou foda-se o pássaro branco, mais vento, ou você é aquele que fala: O quê? Eu tô num barco?

- Minhas experiências dos últimos anos só me levaram a afirmar que a intuição é esse ponto da paixão, neste ponto da paixão a intuição está lá junto, existe uma fluidez, você percebe que está fazendo parte de uma coisa maior, aí as escolhas são tão fáceis, são muito fáceis, eu não sei de quem é isso, que a “intuição é paroxismo da razão”, é um pensamento tão rápido, tão preciso, que você não consegue refazer a trajetória, algumas pessoas tem a tendência de ligar a intuição com alguma coisa mais mística, o que não deixa de ser, no meu caso seu sou macumbeiro mesmo..., eu também vi bem religiosamente isso, mas eu não tenho dúvidas que é bem racional, não no que isso tem de construção, mas no que isso tem de precisão...e aí é isso, e eu fico buscando este estado.

- teremos o tempo da existência
o eterno-




VI


Fanny Abramovich

Cena 1:
Quinta feira, no apartamento onde ela mora. Casa cheia de plantas, livros coloridos, brinquedos e coisas vermelhas, espaços abertos entre as plantas, vivo e expansivo, algo ocupado de ser.

Cena 2:
Fanny me vê com uma caneta e uma caderneta de anotações, ela pergunta se eu escrevo naquele caderninho pequeno, eu digo que sim e ela vai até seu escritório, pega um grande bloco de papel fechado, me faz escolher um caderno maior com capa dura e me dá quatro lápis de cores, com uma ponta grossa, de madeira... e diz: pronto, agora sim.

Cena Final:
Solto primeiras palavras e ela me olha e diz:
Se você está falando de Projeto vital, eu sempre fiz os meus, e tem uma coisa: quando de certa maneira eu respondi as perguntas que eu estava fazendo sobre aquilo, baubau, porque eu não vou ficar repetindo as mesmas gracinhas a vida inteira.
Então, quando eu achei que eu já tinha respondido as minhas duvidas sobre o pré eu passei para o primário, e assim foi indo.
Eu não entendo como tem pessoas por aí 50 anos falando as mesmas coisas, e tudo entre aspas, não é a opinião delas, eu acho um espanto, bom, eu prefiro provocar espantos, deixar os outros sem saber o que fazer...
Então, é claro que eu fiquei inventando os meus projetos a vida inteira.
Eu sempre segui um pássaro branco, se não tiver, inventa um, mas não sigo um livro!!! Eu sigo a minha intuição, eu leio porque eu gosto de ler, muito, mas eu sigo a minha intuição, não a minha sabedoria, já foi a época, já foi a idade de seguir as minhas leituras, e saber que elas não me levaram a quase nada, quando digo, e digo com toda a honestidade: o que eu aprendi de Pedagogia, eu não aprendi com os meus professores da USP, eu aprendi com os meus alunos de três anos, isso é uma verdade.
E é isso que estou tentando fazer com você agora... para que você finalmente se permita artistar!





VII




Chelmi e Zoioomc

-Sentir cansa, cansa sim, se você sente realmente. Vem um mestrando falar com você, mas se ele não sente na alma também não consigo responder de dentro... Quando você sente cansa, sente tanto que exaure.
- Imagina se naquela época quando éramos jovens iríamos gostar de músicas de amor...Agora eu sei que música é como poesia: não tem regra, pode ser sensacional falando de pintura de carro, de cores. Misturar as coisas. Relacionar algo específico com a sua vontade. Hoje, mais velho, estou mais aberto. Para a coisa mais poética, não tem literalidade. A coisa é mais ampla.
- Vender poesia ao invés de balas.
- Isso é resistência no lugar certo.

(e um lugar para fora das ideias)





VIII




Encontro com Fátima Freire

O ato.

- Uma criança. Uma criança! A desenvoltura, a capacidade de leitura, de ler o que está acontecendo... vem a imagem de uma criança! Para ser ASTUTO, tem que estar livre, com os canais de recepção desentupidos. As crianças estão abertas para receber e sentir o que está vindo do meio ambiente. Um adulto que não se trabalha já está entupido.
Esse é um dos maiores desafios do meu cotidiano. Manter essa criança constantemente ACORDADA, acordada a criança interna, no sentido da sua ligação com as coisas da natureza, com as pessoas, com o seu sentir. À medida que você vai se tornando adulto, dependendo de seu trajeto de vida, você vai se entupindo, se entupindo... O que eu quero dizer é que cada vez mais a pessoa vai acreditando menos em si e, sobretudo no que o seu coração diz ou no que o corpo está sentindo e vai se deixando ser impregnado muito mais do que o outro quer que você seja, ou pai e mãe que está querendo que você seja, o trabalho querendo que você seja, (você está me entendendo?), ou seja, essa minha briga constante no meu cotidiano, de estar atenta comigo mesma, do meu percurso, é de não perder contato com essa criança interna no sentido de não deixar de ser...
Eu sempre me espanto com a minha capacidade intuitiva, de leitura, de estar com as pessoas.
Talvez a dificuldade seja de eu estar tão atenta, porque o problema é que a gente esquece que a gente.... não é que a gente esqueça, é a que sociedade via de regra nos pressiona para que nós não acreditemos na nossa capacidade intuitiva enquanto que... muitas vezes, no contexto, nos valores que nos passam é que a intuição ela é... Ela não é cientifica, ela é inferior, repare... Quem fala em intuição e emoção não está com nada... É disso mesmo que você está querendo falar?


Depois de responder algumas perguntas Fátima sobe até o seu quarto, eu subo atrás. Ela diz que tem algo que vai me ajudar. E me dá um livro: O Feminino e o Sagrado- Mulheres na Jornada do Herói, beatriz Del Picchia e Cristina Balieiro. Saio de lá com o corpo tremendo, compro uma mesa nova. Era hora de escrever sobre um outro chão.



IX

Gilberto Mendes


(o Raro) Queria saber como o chão se comportava, dos ladrilhos inchados às demais camadas: água, madeira solta, terra preta.
Eis o seu passado molhado: a geometria das folhas, as circulares rochas, a massa densa
E escavava, para voltar onde estava
Quanto mais descia, mais a superfície acontecia
Feixe e nascença:
Um peixe sobre a mesa


Gilberto, como se faz uma vida?

- Eu já gostava de composição, me casei da primeira vez e me afastei do piano, do estudo do piano. Neste momento eu me defini: queria ser compositor. Então eu compunha muito, muito, muita música para piano, muita música de canto piano, pegava textos de Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e comecei a compor. Mas custei a ficar conhecido, comecei a estudar musica com 20 anos e fui ficar conhecido publicamente em grande estilo já com 38 anos de idade. Eu compunha um monte de musica que não era tocada, agora elas são conhecidas mundialmente, são tocadas em São Petesburgo, Berlim, mas naquela época eu morava em Santos...
Eu me meti no partido comunista e um irmão meu me chamou atenção: “Você largou a faculdade de direito para ser músico e fica aí usando seu tempo com o partido?”
E daí eu vi filme Os sete samurais, do Kurosawa, filme de espadachim samurai, o filme é sobre a destreza. Uma aldeia está sendo atacada por bandidos e um deles tem a ideia de contratar samurais para defende-los, aí eles vão para cidade procurar estes samurais, o filme é notável... só a seleção desses sete samurais vale o filme...
Tem um momento que é lindíssimo:
Eles já estão com dois e vão contratar mais um. Vão ver uma briga de um samurai com outro cara.
Não tinha começado a briga, e um deles diz: aquele ali já ganhou.
Quer dizer, o samurai reconheceu outro samurai só pela postura, pelo jeito de ficar parado e olhar. E de fato ele ganhou muito rápido.
O filme carrega essa coisa do domínio do metier, você precisa ter um domínio do que você faz, e eu transpus isso pra musica, estava há 15 anos na musica e ainda não era ninguém, aí isso me doeu... e resolvi investir nisso, resolvi ir atrás do meu metier.









Abrir o caminho sobre a boca escura do mar
-ensurdece-
escrevo a vontade de voltar



Laranjeira, pés de mamão e tomates: eu Vos nomeio




Lista de entrevistados:

- Luis Felipe Lucena (educador e escritor), Bruno Pastore (poeta e grafiteiro), Simone Spilborghs (educadora e poeta), Giuliano Tierno (escritor, contador de histórias), Camila Peixoto (fotógrafa)
- Luiza Christov (professora da UNESP- IA)
- Chellmi (poeta, organizador do Sarau da Brasa) e Zoioomc (rapper)
- Phillpe Blue (mágico ilusionista) e Denis (produtor)
- Joana Zatz Muzzi (artista e educadora) e Mariana Galender (fotógrafa)
- Nelson de Oliveira (escritor e professor de literatura)
- Pepe (ex jogador de futebol do Santos)
- Fátima Freire (educadora)
- Michel Melamed (ator e escritor)
- Fanny Abramovich (escritora)
- Gilberto Mendes (músico e compositor erudito) com participação de Flávio Viegas Amoreira (escritor)



Lista de pessoas e personagens à vista:
Pedro Malasartes
Macunaíma
Oscarito
O povo brasileiro
Ariano Suassuna
Deus e o Diabo
Bispo do Rosário
Bernardo, Manoel de Barros
Estamira
Damiã Esperança
Mestre Molina
Moacir Arte Bruta
Personagem do lago Walden




Apropriações

Detienne, Marcel e Vernant, Jean Pierre. Métis- As astúcias da inteligência. Trad. Filomena Hirata- São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

Wisnik, José Miguel. Veneno Remédio: o futebol e o Brasil- São Paulo: Companhia das Letras, 2008.