sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

=
Eu já fui corpo de um animal, ainda sou. Arrasto minha materialidade há milênios, convivi com escaras e raspei-me na superfície de toda grama que encontrei. Chama-me o lugar em que dançar é uma prece, ah, dançar para fazer comida, para enrolar os dedos nesse fio infinito que sai da pele de um animal e vem parar aqui, na tua mesa, na escrita de abrir-fechar em alguma janela no bairro de perdizes, numa qualquer rua da ministro godói. Chamam isso de processo de aprender, eu chamo memória. De entrar numa palavra fonte, num cheiro fonte, num objeto fonte deitado pelas mãos de um negro, naquela mulher amamentando no chão de terra batido com seus seios secos, que sonha em segurar os cabelos chorando na chuva. Chamo isso de re-ligação. Escrever não importa. É o rosto a vela que está a se cavar. Uma vez ouvi que falo para dentro. Outra vez ouvi que não sei narrar. E que sou confusa. E que não me exponho. Foi então que decidi fazer as unhas antes de lavar a louça. Para não ser testemunha da força reativa. Para caminhar até o espírito debaixo da escada. E digo: sim, o sagrado. Porque ele não existe sem que eu me mova. E nesse encontro perguntar é escrever é escavar. Se meus seios secaram foi porque a escrita não soube silenciar, não soube cair um passo atrás, parou na minha morada. Eu. Esgotada, enferma, olhando torto para qualquer embriaguez. E chego ao final dessa prece molhada de uma flor que ainda se faz veiohuva que ainda nalquer m, oa. N manimal e vem parar aqui, na tua mesa, na escrita para abrir-fec. Anunciada. Há que se erguer as pontes. Entre o espírito de antes e o corpo de hoje. Há que se comunicar, de reparar os buracos do tecido do mundo, no artesanato invisível para depois, o esquecimento. Há que se refazer o animal. O animal da escritura. Desse instante último.