terça-feira, 31 de janeiro de 2012

hoje,
antes de escrever, olho para todos os lápis,
quero apontá-los um a um

(não sei o que fazer com o pé quase seco de feijão exausto de parir. Já é hora de replantar as mudas de alecrim. As uvas estagnaram-se. O manjericão não pára de crescer. O pequeno limão parece conformado. É preciso tirar o coração do sol)

mas nada me diz tanto quanto
-descrever o negro com a unha-

domingo, 29 de janeiro de 2012

Você se parece com a minha gata.

Te pego solta, brincando numa loja, em meio aos cabides. Você vai pra casa e não te vejo. Tenho medo de apertar teu corpo e espremer tua respiração,
Mas vou até o seu sono ver como está. Você faz pouca resistência.

E percebo como sou pequena. Mas sei o que é cuidar.

Você cresceu e eu atrás. Saía e voltava. Nossos segredos. Teve filho no meu colo. Era úmido de responsabilidade. Eu fui os olhos da tua mãe

e te joguei atrás de um muro,
Sem saber que o muro pode nos livrar de um incômodo,
mas a escrita não.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Livro da Sabedoria II

Do livro de Jó:

- antes de sair, verificar se a ideia está colada ao corpo-
- ao descer do trem, o chão ainda se move-
- não se ocupa em alguém o espaço de dois-
- a roupa da santa se desgasta com o tempo-
- o guarda-chuva preto no quintal é a memória do morcego debaixo da pele-
- peixe branco se come com as mãos, com bocado de farinha e molho temperado no prato-
- a superfície hospeda o verso-

sábado, 21 de janeiro de 2012



















sou uma pequena flor caída de seu ramo
no chão lilás-

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

hoje guardei um trocado no canto do bolso
-é preciso ter alguma reserva - pensei
pode ser caro não desistir de mim

oração da manhã

É ao Espírito Criador a quem me devoto
Cumpro meu dia, deito-me cansada sem planos para amanhã
Ele me cava uma massa quente por dentro, que tem ouvidos e pulsação. Interrompe minha garganta quando se sente sufocado

É ele que me faz ter vontade de andar de mãos dadas com a rua
Olhar um rato e não me assustar
E ver um sapato jogado no meio da casa e estranhar a existência inteira

É ele que enrijece meu corpo como quem se esqueceu de doar
Que se debate na miséria do jornal
Que vai à cracolândia, à Gabriela Llansol e Jodorowsky como quem segura uma caneta

Que lê a terra
E arranca as palavras debaixo da unha
É ele, que retira a panela de arroz debaixo da chuva
e me devolve para a mesa da fome

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Era portadora de uma mensagem. Só faltava decidir o lado.

E no meio desta história havia um homem sério e bigode grande dizendo que a vida pode ser ativa ou reativa. Era uma bandeira que trazia nas mãos, como a Vontade de Poder. A mensagem fora escolhida: partiu a menina de calça branca no meio da perna, cabelo curto e, entre os dentes,

a voz a correr pela soleira da porta, deitar no balcão, amansar as ovelhas, atuar no vivo.

Voltando:

É difícil perceber que não se tem um plano para a vida quando se pensa que tem.

Vi uma mulher forte cair e suportei-a em meus braços. Não havia qualquer escuta de onde viesse,
Era ver o tecido mole e acolher, desta experiência, era limpar e guardar.

E assim se faz um amuleto de tecido, solda e erva.

Põe a erva de São João para fazer crescer a Anomalia da terra. Se as botas do ditador ainda te encaminham, envolve a erva em tecido cru, véu de noiva e linho nobre, costura seu entorno como um coração, até que seja o dorso inteiro

Voltando:
Tem solda no pescoço dela. E um ovo tocando a terra

sábado, 7 de janeiro de 2012

Para Luis

Há escrita entre o homem e a sua palavra
Escreve-se porque a mão em que caberia a humanidade foi mutilada pela língua do sentido
Escreve-se
porque no silêncio dos roedores há mais indignação
porque o homem rasga o missal sem nunca ter desobedecido o próprio pai
Escreve-se,
por uma liturgia em que todos comam a palavra final

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

No ponto de ônibus, ouço a seguinte conversa:

- O batente da porta dos fundos de minha casa está apodrecendo. Vi que a madeira está quase sem tinta, com uma textura oca e úmida, quase se desfaz na mão. O batente está frouxo, mas não totalmente solto. Entre ele e a parede há uma fenda, um espaço por onde escorre uma poeira fina escura e,
Não consegui limpá-lo ontem. Ainda com o pano molhado na mão,
Coloquei o dedo naquela fenda e espalhei a poeira de dentro pela superfície do meu braço. Fiquei, por um instante, suspensa. Tinha luz.

E luz era a qualidade do desaparecimento.

A outra responde:
-Um animal quando vai morrer se recolhe. O homem, quando vai morrer, se recolhe das palavras. Não te parece estranho: por mais que a gente se esforce em dizer
o silêncio ainda será grande
pois o corpo é água
E as águas reverberam?

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O centro da casa é a mesa a escrever. Por um motivo:
o seu teto é frágil. não garante proteção contra a chuva,
nem guarda a comida de amanhã

Do livro da sabedoria I

Os sete pecados capitais:

-Nos braços de um torturador voltar a ser criança
-Deixar a fome no meio da fala
-Confessar ao caderno o que nasceu para ser dito a alguém
-Aceitar que uma planta seca não brota
-Ser soprado pela falta de sopro
-Construir a passagem secreta para a pedra e não achar a porta
-Esquecer de apertar a mão do homem que vende fumo de corda
Entro num bar. E ouço:

A sensação era de parar no tempo. Considerava agradável repousar na continuidade dos dias. Mas, parar no ar, como uma gaivota? Impossível.
Até o que morre está a aproximar-se e distanciar-se de algo.
Eu não sentia o movimento. Acreditava-me diferente. Achava que esta pele produzia outro cheiro. Que era possível ouvir o que eu falava sem balbuciar uma palavra. Era um tipo especial de comunicação, mais sofisticado do que as formigas.
Mas foi o tomate que me lembrou da fertilidade. Da semente que se parte, incha estourada, migra e se encharca. Cresceu num vaso, arqueando o caule. Curva de uma trompa que acaba de acordar.
Há um ritmo nisso. Que esculpe um rosto, mesmo no escuro.
Por mais espalhado que esteja, há uma forma que te vê desprevenido e morde.
O tomate,
sem sentido nem língua nem juízo nem gozo nem estética nem moral nem destino nem crença nem unidade nem eu.
Estou,
a desenhar em mim o que extraí (e se enlouquece aqui dentro)
ao som dos tambores, no gesto de um
homem nu. Cavando a fundação iniciada no umbigo do eterno sim
acostumado a dizer não.