quinta-feira, 2 de abril de 2020

vinha tudo

ainda insistindo no encontro de alguém com o seu próprio dia,
autorizou que pudesse começar a vir o entendimento

(e vinha aos montes, vinha tudo)

não exatamente para si, mas no coração do livro ausente. 
e pensou:
entramos numa nova exigência de ler: pela distração e pela oração.

e assim permanecia
distraída, como quem reza.


segunda-feira, 30 de março de 2020

os primeiros a morrer


os primeiros a morrer foram os poetas,
em seguida dos andarilhos,
e, por último, os sem-aderência

caíram um por um, 
deixando aparecer seus modos singulares de tombar

à medida que caíam,
tornavam evidentes os fios soltos de suas roupas, 
suas dificuldades em segurar o que precisava ser detido,
e de soltar o que precisava partir

seus rostos, na primeira hora da morte,
adquiriam aquela aura de prazer e concentração
que a boca, em vida, emanava quando suas mãos encontravam seus próprios ofícios

mas antes de partir, disseram

os poetas: “é preciso que eu deixe de lutar pela justa medida do dizer com as réguas disponíveis”,

os andarilhos: “é preciso que eu volte a sonhar antes da embriaguez”, 

e os sem-aderência: “de agora em diante, o mais simples será o mais belo.“

foi a primeira vez que as mãos reconheceram a existência das forças invisíveis
e as réguas, sonhos e belezas
seguiram inventando um mundo-hospital que lhe pertenciam integralmente


(e eu, que me encontro nos três, passei a morrer todos os dias três vezes para tentar chegar à hospitalidade)




nunca estive

nunca estive tão próxima da mesa, dos livros e dos objetos que elegi,
numa estive tão próxima de meu filho, da companhia do amante,
e, no entanto,
onde estou?

se a voz dessa época não me alcança,
se não consigo escutar seus fluxos e imagens?

é fato que o céu está diferente 
que descobri que tenho mais tomadas que preciso
que limpar a casa progride sem muitos desastres
e que encontro um pouco de sol acordando mais cedo

mas algo se alterou na janela
as coisas tinham uma sensualidade outra
essa paisagem não é mais para mim

como prosseguir 
se a natureza se cansou dessa língua, dessa medula de palavras
e me diz que não sou necessária
que não somos mais

e fecha os olhos
 pra tudo o que não for desaparecer