sexta-feira, 28 de outubro de 2011

[da saudade]

Meu irmão foi meu primeiro professor de literatura. Era difícil aceitar seu amor pelo mineral e a sua vontade de dormir ao chão. Tirava o sorriso de dentro da pedra. Era possível contar nos dedos os momentos que dela saía para estar comigo. Mas vinha.

Com ele conheci minha primeira estante. Em meio aos caóticos livros habitados num pequeno quarto, havia os escolhidos por ele, sublinhados com a lapiseira fina de seu silêncio. Era seu modo branco de saudar a vida. Para quem quisesse escutar.

Íamos felizes à padaria. Eu, descalça, em estado bruto. Ele, esculpido em corpo. Tínhamos as mãos atadas. E foi aí que entrei na escrita. Para ter com ele a mão na pedra, a buscar o fermento para umedecer, partir e ferir a pedra. E dela sair o pão.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Há um diálogo aqui, mas não ouso indicar quem fala ou quanto diz,
não sei o que nos separa.
Era a chegada à igreja central. Ela sai do barco da escrita e participa da cerimônia à espera dos lobos.
Observa os padres sem espinhos, à procura do lobo final, o lobo cansado do dia, trazendo a mulher arrastada da floresta, onde a última coisa era ser mãe, era o gosto do perigo que valia, se fosse a última viagem, mesmo fraca, o alimento daria ao outro, mesmo caindo de sede, até a próxima cheia,
No entanto, era mãe.
Do cabelo arrancado, da loba musical, dos sapatos jogados contra a parede. Era a louca
Daquele rastro que não mais serviria. Toda manhã um novo cheiro. Misturado ao mar. Era preciso escavar o próprio. Porque se deita? Não importava ter duas ou três pernas,
medo e escolha saíam da mesma fonte. Não se pode, mas se vai,
ao sepulcro, verificar se o corpo está morto. E eis que
seja de ouro, na neve, debaixo do guarda-chuva, aos trapos
olha-se para dentro de um acontecimento. Os sinais, o tamanho da pegada de um livro, o tropeço na letra, a mordida silenciosa
e ouve-se os segredos da fome espalhada na história.
Para a planta que desejava ser humana,
Só o cão preto entenderia seu último grito. Arrancar a mulher de seu ofício é desastre
Pois o lobo rastreia a carne estranha. Soca o visitante na garganta da terra
e desta grande dor verte uma linguagem para
perfurar a janela
Estirpar o silêncio das famílias com seus caninos inusuais.
Quando o texto é amante da mulher,
Vive-se pelo encontro com o homem que não seja eterno
Para conviver com a novidade do desenho imenso:
O amor da língua não é convite
E como chamar o pedido de sinceridade da terra? Escrita. Ela se repõe.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Um Romance de Formação- em capítulos

- as unhas e o encontro com a superfície arranhada

- caminhando na estrada, dizer sim na cama da mãe

- em plena entrega, superar a obscenidade nas palavras de uma nova língua

- o perigo de se amassar o crânio de um animal ou de uma criança

- o ridículo que sustenta a vida, a invenção constante do nós

- com quantos ódios se faz uma escrita?

- onde buscar generosidade e água torrencial longe de casa

- o abraço de despedida, sangue de crocodilo, no vazio de um grito escondido, se assume a falta de força

- do rompimento com o gesto de ruminar um eu

- sobre o uso de armas incorretas contra a vida. Se a arma é apenas de enfraquecimento, matar e comer. Não deixá-la agonizando.

- Da descida ao talo. E o regresso

- O que se faz quando o espírito quer mais do que jantar, quer comungar

- Do aprendizado da educação aonde não se educa

- do instante à morte: a opção pelos que se roçam
As filhas da acídia ao abaixarem suas cabeças sentem o aroma da laranja
e logo entendem que precisam de perfume. Todo o cenário se refaz em lucidez empoeirada
mas por vezes ocorre do cheiro alaranjado voltar, inesperado, por dentro da fala
e suas veias negras transportam a calda da fruta, queimando,
em xícara nova, colher de prata
ela, que queria ser vestido acomodado no armário,
reconhece a terra:
-tenho vivido como vivo?
-até onde um corpo suporta o corpo?
e a laranja entorna
no sumo da contradição

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Livro das comunidades- Llansol

“A terceira coisa que mete medo é um corp’a’screver. Só os que passam por lá, sabem o que isso é. E que isso justamente a ninguém interessa.”
Um pássaro aqui pousou e disse:
- caguei na cabeça do sistema de arte falido
- caguei na cabeça do artista e a sua arte polida
- caguei na cabeça do ensino de arte cagado
Eu perguntei: E então, quem sobrou?
Ele respondeu:
Caguei na agonia da pergunta vazia

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Um diário

¨Pode-se viver completamente num mundo imaginado¨- esta frase me aconteceu nesta tarde. Estava a dormir, com meu livro de ressurreição ao lado,

Sim, posso dormir, mas ainda em total desconforto

Seria eu capaz de deixar o amor passar em branco caso fosse ele vivo e me acordasse nesta tarde? Eu me furtaria da escrita se ela fosse transbordo?

Não demoro a preencher,
mas o recipiente parece ser de grande volume.

Viver completamente no mundo imaginado? Corpo coberto comunga? Eis a pergunta, deitada de vestido, nua por baixo, para que o encontro, mesmo que sonolento, encarado de frente,

Aconteça.

A escrita se apresenta como o caminho por onde as pernas dançam. A censura não será maior que a música

Tenho me movido por muitas ideias,
Comparecido a belos encontros de quase inauguração, mas nada me convoca mais que este jogo que vai correndo entre os dedos,

Já não sei se a poesia me alarga
Ou me arrasa. Estou presa num fluxo de linguagem, de fala densa, cifrada, que explode em companhia dos olhos de alguém.

É preciso retirar-se da frente e ser passagem. Ou paisagem. Abandono da separação de estados e reinos.

Não consigo deixar de olhar para o animal que come. E todos parecem mais famintos que eu,
Atraio-me neste desespero que sacia
enquanto descrevo a página parece diminuir, esforço.

Descobri a cortina por onde olha o gato. Ele sabe que o quero,
Nos amamos e isto é lucidez. Eis que chega sempre a um mesmo ponto e desaparece. Qual a curiosidade, saberei a hora de voltar? Deixou um rastro ou dormirá esta noite ao relento?

domingo, 9 de outubro de 2011

Cara Babette,

Encontro-me adequada a um vestido aberto

Vejo o corpo do cavalo branco a descer a vila com sol

Estive a escorrer no escuro, a trabalhar para encontrar frases

Mas a fome passa da imagem

Há semanas, Babette, neste convite, estou a deixá-las

para seguir o monte,

haverá chuva aonde vier. Viveremos juntas

Não há vestígio nisso. Última estadia

A sentir-me viva na aula, no encontro das águas,

suporto que o monte me olhe. E diga: Absolutamente

Nos falaremos,

nem silêncio nem palavra.


Compõe, Babette, uma mesa farta, a toalha

habita o pequeno cálice,

som da compreensão,

que eu te responderei:
sim, os mestres chamaram-me,
mas o pelo amarelo deste pássaro
cegou este nome

Estou condenada a retirar meus olhos com receio de descobrir-te,
Mas posso ouvir o espanto de sermos, Babette, esta legião.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Tomas Tranströmer

" Os fios elétricos
estendidos por onde o frio reina
Ao norte de toda música.

O sol branco
treina correndo solitário para
a montanha azul da morte.

Temos que viver
com a relva pequena
e o riso dos porões"

(trecho de poema)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

chuva no rio
dois irmãos
uma conversa

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Escorrendo frases para aliviar o sangue

A poética é a manifestação do ser, não é privilégio de ninguém.

Todo homem é um visitado, recebe um chamado interior. O trabalho é colocar-se em disponibilidade.

Viver em potência contínua.

Quando a gente fecha o corpo, perde a aventura.

Crias estratégias para permanecer estranho e vivo. Errar no seu mais profundo, errar por febre.

O homem é capaz de superar a loucura.

É preciso fazer algo com o que sobra.

Não existe exercício mais doloroso do que deixar de ser. No entanto, não existe exercício mais sublime do que deixar ser.

Banir a guerra por uma sensibilidade.

O silêncio é isso. Falar das coisas do presente.

Apropriar-se da impropriedade que somos.

A palavra se esculpe com o testemunho. A palavra ornamento é o testamento do homem.

Com Estamira:

Para cada marca um mesmo remédio?? Não pode ser...

O céu é apenas o reflexo daqui de baixo.

Tem o lúcido, o ciente, o consciente e o Sentimento, que é o que grava.

Quem anda com Deus largou de morrer? Largou de passar fome?

As doutrinas trocadas ridicularizam o homem.

Sou ruim, mas não perversa.

Tem o eterno, o infinito, o além e o além do além.

Me trata como eu te trato que eu te retrato. Do contrário, eu te destrato.

Vocês não aprendem na escola. Na escola só se aprende hipocrisia e charlatanice. Vocês aprendem com as ocorrências.

Eu transbordei de raiva.

Tenho raiva dos fracos.

Não humilhar os restos que ainda não são.

Tudo o que é imaginado existe, é e tem.