sábado, 17 de maio de 2008

A maldade, Tarkoviski e a educação

A mulher não possui sequer meia hora que possa chamar de sua[1]. Algo dentro dela mesma solicita renúncia e abdicação. Sua natureza foi construída assim. Tudo parece atrapalhar ou afastá-la deste pequeno momento roubado só para si. Os compromissos aparecem à porta, a cabeça explode de tarefas a cumprir, o desejo de ser boa e gentil aos outros vence sempre.
E esta capacidade de auto-imolação é tão freqüente que muitas vezes temos a certeza de que a mulher parece não se importar com o tempo “perdido” nas tarefas dedicadas ao mundo. Aparenta mesmo que é feliz desta forma gentil. Chegamos até a pensar que seus desejos internos são infinitamente menores do que a grandeza de colocar-se a serviço dos outros.
Tal serventia revela-se em todas as atividades que realiza, não apenas em casa ou na família. A mulher é adequada em tudo e que faz. Todo o tempo está a cumprir tarefas, com uma eficiência notável.
Chegando mais perto, cada vez mais, percebemos que não é a mulher que se encontra na mulher, mas a história que ela carrega nos ombros. Um corpo caído devido ao peso insuportável de abandonar sua consciência e vontade de agir conforme sente. Ao fazer inúmeras concessões, paga pelo esquecimento de si. Entregar-se ao outro antes do encontro consigo é a mentira que inventou para permanecer apartada de sua própria dignidade.
Pois todo ato adequado revela um pedido de reconhecimento. Uma solicitação de perdão, um pedido de amor, de auxílio e conforto. A mulher não sabe amar.
Uma vez apartada de si mesma não lhe é possível amar completamente. O verdadeiro amor não pede correspondência. É capaz de amar somente quem antes se resgatou.Levada às sua mais extrema conseqüência, amar sem buscar correspondência é uma tentativa de superar a vida humana e alcançar o divino que nos habita.
[2]
Mas com a vista enfraquecida é difícil romper o cansaço espiritual que sentimos. Força desgastada por tantos compromissos com a continuidade das coisas, como saber ouvir nossa própria voz e como distinguí-la de tantas outras ?
Santa Teresa Dávila ouvia seu próprio canto. Sabia reconhecer a voz verdadeira que emanava de si de acordo com a quietude que deixava em sua alma. As palavras são reais quando não nos saem da memória por muito tempo e às vezes não nos abandonam nunca...
Ouvir os desejos da alma pressupõe sujeitos egoístas. Enganaram-nos quando nos fizeram acreditar que a vida em sociedade deve ser pautada pelo bem comum. Não há bem comum sem sujeitos inteiros.
Tenho carregado em mim duas frases verdadeiras.

Duas frases essenciais que fazem parar meu coração. Ambas são de Andrei Tarkoviski:
O grande mal de nosso tempo é não haver mais grandes mestres;
A educação deve ser substituída pela autodisciplina
[3].
O que elas significam? Dizem algo maior que a explicação. Algo que procuro a vida inteira e não morrerei sem antes pronunciá-la com minhas próprias sílabas. Martelam minha consciência o tempo todo e me compelem à ação. Poderia sair gritando pela rua ou anunciá-las por aí. Mas não se trata disso. Trata-se de duas frases mudas, que somente eu posso escutar. Somente quando meu coração aceitar ser sua morada poderei balbuciá-la pelo mundo.
Penso que esta é a maldade mais urgente que precisamos assumir. Acolher as frases que nos falam ao espírito. Aceitar ser morada de um plano secreto, somente seu.
È por isso que rogo todos os dias para que a mulher saiba quem ela é, que ouça seus pedidos, que desenvolva sua consciência e prática moral, que saiba dizer não aos compromissos, que tenha coragem de permanecer em estado de criatividade. Que escreva mais o que pensa. Que respeite sua natureza voltada para o divino. Que transite pela alma sagrada e impura do mundo, cheia de presságios e adivinhações. Que se permita repousar em lugares impossíveis. Que cultive a promessa em seu interior. Não precisamos de mulheres adequadas, e sim das misteriosas, das compromissadas consigo mesmas, das que recusam uma ajuda ou uma tarefa a mais não por incapacidade, mas por verdadeira maldade. Precisamos daquelas que reconhecem que a única maldade necessária é permanecer mergulhada no Grande Silêncio.
E que saibam ser odiadas pelas pessoas certas.


Ângela Castelo Branco



[1] Virgínia Woolf, Um teto todo seu, Editora Nova Fronteira, 1985.
[2] Octávio Paz, As armadilhas da fé. Sóror Juana Inês de la Cruz, Ed. Mandarim p. 406.
[3] Andrei Tarkoviski, Esculpir o tempo. Martins Fontes, 2002.

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