terça-feira, 9 de novembro de 2010

Intantes de mim ou palavras que me cabem ou caem

Poesia: há um momento em que a vida tem um sentido insuportável: um estado de profundo excesso. O corpo ocupa o seu lugar e o campo continua guardando o sol e a noite. Lucidez depois da chuva, engrenagem nova, ligação inesperada e clara. Certa vez ganhei uma caixinha pequena com uma jóia dentro. Aquela imagem de que se guarda algo a mais do que ela mesma e por isso adquire seu último estado de beleza não me sai da cabeça. Saber que se guarda algo a mais e, no entanto, trazer em si a sobra, que se desdobra porque contém. Sobra: palavra de poesia. Estado poético e poesia: ocupação dos cantos da casa, da palavra e do corpo. Busca de pontos cegos, comprometimento com o que se vê depois da visita da verdade. Condensação, convite ao desdobramento. É sagrado porque é intermitente, entra e sai quando quer. Último passo para a fusão total, ultimo momento antes de descer rio abaixo. Aqui não habita a análise combinatória ou a arrumação de dados. Fundação. Fundição, Casa de Solda. Amálgama. Corpo gasto em outro corpo gasto. Guardião de um único sim.
Última cena do filme A Partida: escrever poesia é aquele momento exato de poder dizer: eu posso, eu posso preparar o enterro do meu próprio pai, preparei-me a vida toda para isso.
Na costura dos silêncios, recebe-se a missão de ser poeta.

Aceita-se ou não.

“tenho sido convocada
a escrever para homem só
aquele que fia as bordas do guardanapo
e guarda-os em sua gaveta
costurando dentro
a força de ser excesso”


Crença:
entre crer ou não crer prefiro o Sim. Na memória do corpo o estado de ritual, o estado de sincronicidade sem ruídos. Basta o olhar encarnado que os objetos começam a falar. Seres de ver, antever, prever. Sustentar a premonição é pesado e sem fim. Geralda era benzedeira, tirava o quebranto com uma folha de arruda e fumava escondido. Raimunda era religiosa, construía pássaros e borboletas de papel para prender na gaiola. Basta um pouco de pó e sol seco. Ter a experiência de crer no corpo: detectar aonde é discurso e aonde é real. Dar banho num homem cego, velho, negro e doente, carrega-lo nos braços, entrar em sua casa à noite sem bater, não duvidar do que deve ser feito. Sujar as mãos com a vida.

Partilha real: dar adeus às teias de aranha, asas de galinha, labirintos e espelhos. Engolir a seco o escorregadio do Outro. Leitor de gravidades. Inaugurar o evento antes de nascer. Aguardar a fala profética mesmo quando a conversa não há. Pregar-se na parede, descer do muro. Não deixar ninguém no silêncio, ninguém que lá não gostaria de estar.

Potência: ousar aumentar de tamanho, sem piedade.

Olhar: não cuidar dos joelhos enquanto é o pé que está doendo. Cheirar o sangue antes que coagule.

Até o fim: não há santos, gênios nem mestres. Há homens santos, homens gênios e homens mestres. Mãos grossas de enfiar a semente em terra dura.

Devoção: construir uma estante com livros de religião ao lado dos tiroteios no deserto. Espantar a oblação. O aberto é mais do que folhas ao vento. Nada pode o guardador de sementes.

Tensão: buscar a fala do chão. Cavar o poço de uma água nova. Ver os poros se abrindo no pano de chão esgarçado. Fomentar o fogo ardente nos ossos. Cada ato bem cavado tem um ritmo, uma febre, um ponto que ressoa. Vida no talo: corpo ereto.

Métis: desejo solto na pele. O último ato. Mudar todos os ossículos do corpo. Descaminhar. Esticar a espiral. Não há outro modo de aproximar-se dela: lugar de habitar. Aqui o vento bate e transfigura-se. Esticamos o ser na próxima esquina. Fábrica de mel.


Policia do pensamento: quando o medo apaga a página, sacos de cimento pedem a voz.

Acídia:
os homens padres da época medieval bebiam na hora do almoço e dormiam a tarde toda, noite adentro. Jeito simples de explicar a canseira do espírito. Vicio e seqüestro de si. Falimento, fé e alimento. Um comer por dentro.

Priapismo: colocar um lençol na janela. Escurecer o clarão do trigo. Dobrar-se como muda nova ao sol e renascer à noite, seta nas mãos do arqueiro.

Bancar: descobrir as plantas medicinais por entre o jorro das pernas. Tocar o impróprio a cada raio do eterno.

Ruminação: um extenso campo de grama e dentes que não podem caçar. Ruminar o pensamento e ficar às voltas com a superfície. Todo sonho é ato, mordida e corte.


Viveremos para sempre de um modo doméstico?

Laranjeira, pés de mamão e tomates:
eu Vos nomeio.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sem rodeios: no ponto.
Esses são instantes arrancados do verdadeiro caderno-de-notas: a alma.
Essas palavras são o corpo que encarna em sangue, em pele, em ossos e em plasma (ou sei lá o nome daquilo que tua ânima nomeia), o aproveitamento dos restos.
Essas são palavras como flexas de matar desperdícios.
Esse é o calar-fundo.
Esse é o abrir-se de mim ao porvir de outros nós.
Gratidão pela dobradiça da porta que entrei essa tarde.

Anônimo disse...

"flexas" = flechas... acontece... rs.

o que tem ela disse...

Que essas palavras entrem na terra
Para continuar nascendo esse teu chão.


um abraço