sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Calçado, calçada, caçada - conversa com Marcelo Ariel


A. Quando sua mão escreve, você está a aproximar-se de algo?

M. Sim, de um calor nos pés. Às vezes quando escrevo poemas ou quando leio em voz alta alguns dos 'salmos de david', tenho a sensação de que meus pés estão descalços, mesmo que eu esteja calçado, de que eles estão plantados nas águas de um oceano. Um oceano de águas quentes, talvez com o Sol no fundo. Certamente é isso, há um Sol no fundo do mar. existe a armadilha de projetar o sagrado nas palavras, e durante muito tempo, como um morcego preso pelo rabo em uma ratoeira, me sentia preso na tentativa de dar um sentido metafísico para a linguagem cotidiana, atualmente tenho a convicção de que 'A palavra' escrita ou falada é o 'reino do demônio' e que escrevendo podemos passar por elas como se atravessássemos uma ponte até chegar a um silêncio edênico, que começa nos ossos dos pés, até explodir na cabeça como uma auréola, por onde saí e sobe aos céus. Quando este silêncio quente chega no coração, todas as palavras se dissolvem e nesse vazio-transparência podemos finalmente nos aproximarmos do que não pode ser dito, daquilo que nos Evangelhos é chamado de O Verbo, o que torna possível a existência do 'paraíso' no mundo e não o oposto. Não podemos nos aproximar desse silêncio solar se estamos em algum lugar fora do mundo, muitos amigos meus poetas, escrevem sua procura a partir de algum lugar fora do mundo, e isto torna difícil a sensação viva da existência do Éden, viva como o toque da mão do feto na placenta. Estudo muito 'A Bíblia ' e dia-após-dia sei cada vez menos e sinto cada vez mais, por exemplo, senti anteontem que a resposta a Jó, pode ser resumida como a lembrança vivíssima de que um dia fomos apenas uma simples célula, esta célula teve acesa dentro dela a sensação viva do éden e sentiu a nossa presença, do mesmo modo, podemos sentir o silêncio e o rastro harmônico do éden, como um lugar depois de todas as palavras. Há um poema de Hans Eszemberger que discute essa questão de um modo mais pragmático, diz o poema que quando alguém está feliz jamais pensa na palavra felicidade, de igual modo, estamos no Éden, se nos aproximamos do éden, houve um prisioneiro que atravessou um campo de concentração ao meio dia e antes de levar um tiro na cabeça, sentiu o Éden, como algo um milhão de vezes mais real do que o regime nazista, do que o próprio campo de concentração. Existe também um campo de concentração das palavras e dele nos afastamos, sem a necessidade da morte como extensão do Ser, para a filosofia concreta, nenhuma criatura finita tem acesso ao Ser, discordo com todas as minhas forças desse enunciado.

A. Do quê/quem você é íntimo?

M. Do estranhamento-amor, ele é como uma névoa prateada que não queima quando chegam os primeiros raios da manhã edênica, insisto muito no éden, porque ele não é uma ideia.

A. Há amizade entre o homem escritor e o homem civil?

M. Sim, através do Poema desaparece a separação entre uma coisa que vê e a coisa vista, sou inimigo da visão dicotômica entre vida e literatura, tenho a profunda fé na fusão entre Hamlet e Shakespeare, Hamlet escreveu todas as peças de Shakespeare. Um cão é um cão-lobo e não um lobo-cão.
A. Qual a sua espinha? Com o quê/quem conversa?
M. Com o Querubim, ora é um cão, ora é uma criança, ora é um lobo, ora é uma árvore que fala .O Ser é uma pergunta-resposta?


A. O que aprendeu escrevendo?

M. Escrevendo aprendi a ler, do mesmo modo, quando alguém ama , aprende a escutar.

A. Há impropriedade?

M. Na dúvida, sim. Este trabalho que fazemos exige uma fé para além do pensamento e da palavra. Mas existem os que vivem no reino do entre e nesse caso as impropriedades são constantes e absurdas.

A. Como você lê? Você é leitor do que escreve? Como vê aqueles que e lêem?

M. Não saber e não ver são atributos da fé. Não sei o que é e não vejo o quê me lê. Não sei quem são, nem o que são. Mas sei de um modo sobrenatural que eles estão perto de mim, estou do outro lado da calçada na rua que aparece nos sonhos deles, sejam eles computadores ou pessoas, árvores ou nuvens, pedras ou lagos.

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