não é amor, mas acaba sendo.
terça-feira, 30 de agosto de 2022
não era hora de abrir as mãos
era cedo o dia
ela olhava sozinha para a imagem
de costas para o rio
-preferia lavar o rosto com o seco do sol-
os pássaros que emanavam de sua boca
alteravam o diálogo entre os sinais
à espreita, uma grande embarcação lenta
vociferava passagem
era cedo o dia
não era hora de abrir as mãos
e trazer para perto o irremediável
nós, os que acordamos tarde,
deixemos que ela olhe
essa é a nossa parte: fazer-se nela
a paisagem
quinta-feira, 2 de abril de 2020
vinha tudo
ainda insistindo no encontro de alguém com o seu próprio dia,
autorizou que pudesse começar a vir o entendimento
(e vinha aos montes, vinha tudo)
não exatamente para si, mas no coração do livro ausente.
e pensou:
entramos numa nova exigência de ler: pela distração e pela oração.
e assim permanecia
distraída, como quem reza.
segunda-feira, 30 de março de 2020
os primeiros a morrer
os primeiros a morrer foram os poetas,
em seguida dos andarilhos,
e, por último, os sem-aderência
caíram um por um,
deixando aparecer seus modos singulares de tombar
à medida que caíam,
tornavam evidentes os fios soltos de suas roupas,
suas dificuldades em segurar o que precisava ser detido,
e de soltar o que precisava partir
seus rostos, na primeira hora da morte,
adquiriam aquela aura de prazer e concentração
que a boca, em vida, emanava quando suas mãos encontravam seus próprios ofícios
mas antes de partir, disseram
os poetas: “é preciso que eu deixe de lutar pela justa medida do dizer com as réguas disponíveis”,
os andarilhos: “é preciso que eu volte a sonhar antes da embriaguez”,
e os sem-aderência: “de agora em diante, o mais simples será o mais belo.“
foi a primeira vez que as mãos reconheceram a existência das forças invisíveis
e as réguas, sonhos e belezas
seguiram inventando um mundo-hospital que lhe pertenciam integralmente
(e eu, que me encontro nos três, passei a morrer todos os dias três vezes para tentar chegar à hospitalidade)
nunca estive
nunca estive tão próxima da mesa, dos livros e dos objetos que elegi,
numa estive tão próxima de meu filho, da companhia do amante,
e, no entanto,
onde estou?
se a voz dessa época não me alcança,
se não consigo escutar seus fluxos e imagens?
é fato que o céu está diferente
que descobri que tenho mais tomadas que preciso
que limpar a casa progride sem muitos desastres
e que encontro um pouco de sol acordando mais cedo
mas algo se alterou na janela
as coisas tinham uma sensualidade outra
essa paisagem não é mais para mim
como prosseguir
se a natureza se cansou dessa língua, dessa medula de palavras
e me diz que não sou necessária
que não somos mais
e fecha os olhos
pra tudo o que não for desaparecer
sexta-feira, 19 de julho de 2019
resolvem virar mundo
no dia em que acertei uma mosca pousada nos meus joelhos
os ossos se retiraram do meu corpo
e virei um molusco
amarelo larva
a luz do teto se confundiu com a luz do fogo
não havia matado uma mosca
mas aquela
que pousara as suas patas nas minhas
é assim que
os encontros ficam espessos demais
coalham
e resolvem virar mundo
os ossos se retiraram do meu corpo
e virei um molusco
amarelo larva
a luz do teto se confundiu com a luz do fogo
não havia matado uma mosca
mas aquela
que pousara as suas patas nas minhas
é assim que
os encontros ficam espessos demais
coalham
e resolvem virar mundo
quinta-feira, 18 de julho de 2019
posso respirar
crianças constroem seus vulcões
não há quem duvide da piracema
as coisas crescem
quando precisam mudar de cor
agora que os macacos cantam intensa e fixamente sobre as árvores,
posso existir do tamanho de um alvéolo pulmonar
posso nascer um pouco menor, caber com as coisas
posso soprar desde dentro uma água nascente
mesmo não sendo quem sopra
mesmo não sendo exatamente a força que resiste à cachoeira
mesmo não sendo a cor que fez o dia brotar
posso respirar
e é imenso
não há quem duvide da piracema
as coisas crescem
quando precisam mudar de cor
agora que os macacos cantam intensa e fixamente sobre as árvores,
posso existir do tamanho de um alvéolo pulmonar
posso nascer um pouco menor, caber com as coisas
posso soprar desde dentro uma água nascente
mesmo não sendo quem sopra
mesmo não sendo exatamente a força que resiste à cachoeira
mesmo não sendo a cor que fez o dia brotar
posso respirar
e é imenso
quarta-feira, 17 de julho de 2019
torrente em tudo
quando, finalmente,
a palavra retornava ao oco
as estantes ficavam vazias
e o silêncio das águas se afastava da morte,
eu permanecia condenada ao desvínculo.
quando, o cheiro da carne momentânea
se atolava de repetição em repetição,
eu pensava:
eu não teria te amado se não fosse esse finalmente
se finalmente não fosse
essa condenação entre
entrar e não entrar no oco gelado da presença
e colher do frio nem bem nem mal
mas a razão de existir de uma colheita:
é sempre a si mesmo o que se entrega
momentânea, original, torrente em tudo
a palavra retornava ao oco
as estantes ficavam vazias
e o silêncio das águas se afastava da morte,
eu permanecia condenada ao desvínculo.
quando, o cheiro da carne momentânea
se atolava de repetição em repetição,
eu pensava:
eu não teria te amado se não fosse esse finalmente
se finalmente não fosse
essa condenação entre
entrar e não entrar no oco gelado da presença
e colher do frio nem bem nem mal
mas a razão de existir de uma colheita:
é sempre a si mesmo o que se entrega
momentânea, original, torrente em tudo
domingo, 7 de julho de 2019
domingo, 28 de abril de 2019
um homem carrega balões para dentro do parque
me coloca em perigo
um outro carrega uma sacola plástica com uma orquídea roxa envolta em plástico, num vaso de plástico
me coloca em perigo
uma senhora senta-se no ponto de táxi para descansar de costas para os carros, coloca sua sacola de nylon limão no meio da passagem
me coloca em perigo
porque hoje é sábado
penso e isso
me coloca em perigo
carrego um maço de trigo para enfeitar um vaso que não tenho, passo em frente à padaria
decido não comer um pãozinho
parar na rua com trigo nas mãos em frente a uma padaria me parece bonito
quinta-feira, 11 de abril de 2019
segunda-feira, 1 de abril de 2019
Tem de haver mais
Agora o verão se foi
E poderia nunca ter vindo.
No sol está quente.
Mas tem de haver mais.
Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.
Nada de mau se perdeu,
Nada de bom foi em vão,
Uma luz clara ilumina tudo,
Mas tem de haver mais.
A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.
Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido,
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.
Arseny Alexandrovich Tarkovsky
E poderia nunca ter vindo.
No sol está quente.
Mas tem de haver mais.
Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.
Nada de mau se perdeu,
Nada de bom foi em vão,
Uma luz clara ilumina tudo,
Mas tem de haver mais.
A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.
Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido,
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.
Arseny Alexandrovich Tarkovsky
eu vi você acordada no meio de um sonho
eu vi você tentando diminuir a distância entre um fruto maduro e a semente
eu vi você desenhando um rio dentro de uma gota de água
eu vi você chorar porque alguém está prestes a amar
mas,
tente não morrer por hoje
tente não morrer
tente, por hoje, não morrer
ainda
que o único compromisso seja
desafiar um pouco a morte
tente, hoje,
não morrer
a morte que não se completa.
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