terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Carta aos sobreviventes


Naquele dia eu estava com uma pele de pera. Daquelas finas, que se machucam com qualquer quina. Aliás, toda pera é uma quina, parece estar sempre querendo um toque.
Sendo mais precisa, eu trazia a grade da fruteira do mundo que passou a noite inteira a entrar na minha carne, fazendo um corte profundo, eu estava lutando pra escurecer e estancá-la.
Trabalhava na pintura do corte, apagava a luz da ferida para ela adormecer e esperar o tempo da cura.
É incrível como as peras são eróticas quando estão sem pele. Mas naquele dia sim, eu tinha uma pele.
Você já reparou como uma pera inteira sem a casca é pornográfica? Uma pera inteira sem casca é o homem nu, deitado na cama com a sua puta, permitido de fragilidade.
Você me falava de como os homens são frágeis quando mordem o fruto. Querem apenas se encolher e acabam escorrendo. Se os homens soubessem como eles escorrem no amor, jamais o fariam de novo.
Foi por esse corte que eu vi o outro lado da pera. Foi por esse corte que eu vi o outro lado da nudez. Eu vi uma palavra rombo, uma palavra intervalo. E é assustador, não tem grade alguma. Por isso eu preciso me agarrar onde termina e onde começa algo. Eu tenho um pouco de medo de não saber reconhecer a fruta.
Como sobreviver a mordida? E, se sobrevivo, sobrevivo em relação a quê?
Posso dizer que um pé sobreviveu em relação ao corte? E o corte? Sobreviveu a quê? O corte simplesmente desaparece? Pra onde ele continua? Como continuar depois da poda?
Às vezes acho que sobreviver é a certeza da morte. É suspender a luta. Nada mais desnecessário do que lutar contra a morte, ela ganha melhor.
Às vezes penso que sobreviver é a morte esticada, estirada ao chão, é fazer coincidir a sua sombra com a sombra das palavras.
Mas, se nos amamos, é por falha. É por falhar a morte. É por falhar a palavra.
Se nos amamos, é porque farfalha. É porque ainda há tempo de retirar os lençóis brancos do armário.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

tudo é casa
e o fim é a flor
tudo é casa
e o fim
é uma flor

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

escrever para por o pensamento no varal