=
Eu já fui corpo de um animal, ainda
sou. Arrasto minha materialidade há milênios, convivi com escaras e raspei-me
na superfície de toda grama que encontrei. Chama-me o lugar em que dançar é uma
prece, ah, dançar para fazer comida, para enrolar os dedos nesse fio infinito
que sai da pele de um animal e vem parar aqui, na tua mesa, na escrita de
abrir-fechar em alguma janela no bairro de perdizes, numa qualquer rua da
ministro godói. Chamam isso de processo de aprender, eu chamo memória. De
entrar numa palavra fonte, num cheiro fonte, num objeto fonte deitado pelas
mãos de um negro, naquela mulher amamentando no chão de terra batido com seus
seios secos, que sonha em segurar os cabelos chorando na chuva. Chamo isso de
re-ligação. Escrever não importa. É o rosto a vela que está a se cavar. Uma
vez ouvi que falo para dentro. Outra vez ouvi que não sei narrar. E que sou
confusa. E que não me exponho. Foi então que decidi fazer as unhas antes de
lavar a louça. Para não ser testemunha da força reativa. Para caminhar até o espírito debaixo da escada. E digo: sim, o sagrado. Porque ele não existe sem que
eu me mova. E nesse encontro perguntar é escrever é escavar. Se meus seios
secaram foi porque a escrita não soube silenciar, não soube cair um passo
atrás, parou na minha morada. Eu. Esgotada, enferma, olhando torto para
qualquer embriaguez. E chego ao final dessa prece molhada de uma flor que ainda
se faz .
Anunciada. Há que se erguer as pontes. Entre o espírito de antes e o corpo de
hoje. Há que se comunicar, de reparar os buracos do tecido do mundo, no
artesanato invisível para depois, o esquecimento. Há que se refazer o animal. O
animal da escritura. Desse instante último.